A advertência dos generais é uma ameaça inadmissível à democracia
Bolsonaro volta e meia sinaliza que o Exército está com ele e que as Forças Armadas não hesitarão em "cumprir seu dever", caso necessário.
São ameaças que até ontem soavam como mais uma das bravatas do capitão. (O problema é que ele parece acreditar nos absurdos que diz e vai transformando essas bravatas, uma a uma, em realidade – para o espanto já não justificável de gente como eu, que sempre achou que, no fundo, não era possível levar uma pessoa assim a sério.)
À medida que Bolsonaro vai sendo confrontado, no jogo democrático, pelos outros Poderes (Legislativo e Judiciário) e pelas demais instituições do país (imprensa, OAB), ele parte para a afronta – da própria democracia.
Nos últimos dias, com a temperatura política do país tendo aumentado muito com a revelação do vídeo da reunião ministerial, Bolsonaro passou a receber alguns apoios explícitos dignos de nota:
– Na sexta, 22 de maio, o General Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, divulgou nota em que afirma que o pedido de apreensão do celular do presidente (no bojo das investigações sobre a tentativa de interferência política de Bolsonaro na Polícia Federal, em inquéritos relacionados a sua família) é "inconcebível", "inacreditável" e alerta que tal medida "poderá ter consequências imprevisíveis".
– No sábado, 23, o General Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa, endossou a nota do Gabinete de Segurança Institucional e afirmou que as Forças Armadas concordam com o teor da declaração assinada pelo General Augusto Heleno.
– No domingo, 24, um grupo de generais da reserva, da "Turma Marechal Castello Branco", formada na Academia de Agulhas Negras em 1971, divulgou uma nota que começa assim: "Alto lá, 'ministros' do STF!" (perceba o termo ministros entre aspas), em tom raivoso, em que falam de "grave risco de crise institucional, com desfecho imprevisível, quiçá, na pior hipótese, guerra civil".
Eu completo 50 anos daqui a alguns meses. E não lembro, desde a redemocratização do país, de um militar fazendo alertas quanto ao risco de descontinuidade do regime democrático.
A ameaça de uma interferência militar – isso, sim, coisa "inconcebível", "inacreditável" e que certamente teria "consequências imprevisíveis" ao país – parece ser mais um daqueles termos impronunciáveis que Bolsonaro naturalizou, mais uma daquelas conversas inaceitáveis que ele normalizou.
Primeiro você diz o absurdo. Arranca-o do silêncio ao pronunciá-lo. Aí você o repete. E então ele se institucionaliza, passa a ocupar lugar na realidade. Quando nos damos conta, já estamos tratando o absurdo como assunto corrente, admitindo-o como hipótese.
Pode ser que essa advertência feita por dois generais-ministros, e endossada por algumas dezenas de generais da reserva, septuagenários formados no período mais truculento da Ditadura Militar brasileira, não represente a opinião majoritária das Forças Armadas. Pode ser que nada disso represente ameaça real de um levante militar no Brasil.
Mas a palavra foi dita. O assunto foi matriculado. O bode, de algum modo, entrou na sala.
O que o Supremo Tribunal Federal e a Procuradoria-Geral da República farão diante da ameaça dos militares? Irão recuar? O que as Forças Armadas farão se o STF e a PGR seguirem fazendo o seu trabalho?
Como a Câmara e o Senado vão se posicionar? E os empresários?
E você, como vai reagir?
As ameaças dos generais, e os argumentos por trás de suas ameaças, são muito parecidos com o que se dizia antes de 1º de abril de 1964.
Naquela época, como o tempo deixou claro, havia entre nós uma maioria conservadora que apoiou o golpe com seu medo e seu reacionarismo. O mundo experimentava uma revolução progressista nos costumes e em outros campos da vida; o Brasil escolheu se esconder em 1930, no velho regime – como um retorno ao Estado Novo, só que em versão tenentista.
Diante da possibilidade de iluminar as discussões sobre os rumos do país, nossos avós escolheram apagar a luz. Somos uma sociedade violenta; uma parte importante da alma brasileira é autoritária e adora seguir um pai-patrão-pastor que simplifique tudo e nos conduza pelo cabresto pasto afora.
Hoje, quase 60 anos depois, parece haver em torno de 30 milhões de eleitores que estão fechados com aquelas mesmas bandeiras antidemocráticas e truculentas. E que estão dispostos a retroceder no tempo também, e se esconder no passado, para perpetuar os valores em que acreditam.
Esses milhões de brasileiros de espírito integralista desprezam conquistas como direitos civis, liberdades individuais, prerrogativas constitucionais, liberdade de expressão e de opção sexual, igualdade racial e de gênero.
Essa turma deseja exatamente tudo isso que Bolsonaro tem apresentado nesses 18 meses de governo: "Criacionismo. Negacionismo de crimes históricos. Oposição aos métodos e resultados da ciência. Armamentismo. Ceticismo sobre mudança climática. Machismo. Racismo. Homofobia", na síntese de Luís Augusto Fischer, em sua newsletter Parêntese, citando um texto de Reinaldo José Lopes, na Folha de S.Paulo.
A base bolsonarista – que representa a soma do pensamento mais atrasado entre nós – apoia o presidente em sua declaração de guerra contra tudo que não lhe é favorável. E busca exercer nas ruas, com as próprias mãos, a supressão de adversários. E deseja que o presidente e seu "gabinete do ódio" ampliem e recrudesçam suas ações.
Lembro de um primo – evangélico, como tantos em minha família – que escreveu, quando da eleição, algo como: "Graças a Deus conseguimos aplicar um golpe militar para endireitar o país sem precisar dar um tiro nem derramar sangue". Talvez essa seja a declaração mais branda e "democrática" que se possa esperar de um bolsonarista.
É possível que esses milhões de brasileiros venham a colocar Bolsonaro no segundo turno em 2022. Assim como é possível que eles sejam vistos, e se vejam, como a sustentação popular necessária à instalação de um regime antidemocrático no Brasil.
Me pergunto se não é exatamente assim que se constrói um regime autoritário nos dias que correm. Espalhando milícias pelo país. Armando essas milícias. Espalhando desinformação. Criando uma guerra de narrativas. Operando com o medo e a ignorância das pessoas. Enfraquecendo as instituições. Absolutizando o Poder Executivo, personificando a Presidência. Partindo para a briga com todo mundo.
Nós chocamos o ovo da serpente. E não de modo desavisado. Muitos brasileiros queriam mesmo vê-la (re)nascer.
Eis o que penso: ou rechaçamos o absurdo ou ele vira norma. Ou recusamos certas ameaças e certos procedimentos e pronunciamentos, ou estaremos permitindo que eles se instalem entre nós. Ou enfrentamos a barbárie ou ela vencerá a batalha contra a civilização.
Já sabemos que por volta de 25% dos brasileiros acreditam que o que Bolsonaro fez até agora é motivo suficiente para reelegê-lo. A questão que fica é: quantos brasileiros discordam e creem que, ao contrário, o que Bolsonaro fez até aqui é motivo suficiente para o impeachment?
Me vejo escrevendo tudo isso e achando absurdo grafar essas palavras. Apenas conjeturar sobre uma ruptura institucional dessa monta, a essa altura da história do país, e da minha vida, é absolutamente surreal.
Gosto de imaginar que a História anda para frente. E que a democracia no Brasil seja uma realidade inquestionável. E que as instituições no país sejam suficientemente fortes para que esse tipo de hipótese não possa sequer ser considerada.
No entanto, tenho me surpreendido tão negativamente com meu país que já não sei mais dizer onde fica o limite do possível.
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Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Draft Canada. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.
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