A angústia da eterna incompletude nacional
Minhas primeiras lembranças do Brasil são da década de 70, vêm do miolo da Ditadura Militar, dos últimos anos do Milagre Brasileiro.
Trago de lá uma sensação nítida: havia muitas coisas em volta que não funcionavam. Me refiro especificamente a objetos comuns, físicos, do dia a dia, que estavam ali para cumprir um objetivo e não cumpriam.
Bebedores sem água. Chafarizes secos. Interruptores na parede que não acionavam nada. Teclas sem utilidade. Fios misteriosos desligados. Relevos escavados na parede para abrigar alguma coisa que não estava ali. Compartimentos vazios. Porta-coisas sem as coisas que deveriam portar. Recipientes ocos. Travas e tramelas sem trinco ou encaixe. Pracinhas abandonadas ao mato. Gangorras sem assento. Tabelas de basquete sem aro. Postes sem a rede de vôlei. Quadra sem bola. Buracos no chão para atarraxar elementos que nem sabíamos como seriam ou para que serviriam.
Você via o desenho geral da coisa e entendia que ali deveria haver outro equipamento ou peça – mas ele não estava disponível. A presença da ausência se espalhava por toda parte – estávamos cercados desse pesado conceito filosófico.
Aqueles itens de baixa tecnologia, inacabados, nos mostravam como a vida poderia ser melhor e não era. Como vivíamos pela metade. Às vezes, num filme, víamos como aqueles mecanismos funcionavam – noutro país, que parecia sempre melhor e mais civilizado.
O maior déficit tecnológico brasileiro foi jamais termos tido entre nós aqueles fósforos que acendiam ao serem riscados com a unha ou na sola do sapato. Nossas capas de chuva não eram exatamente impermeáveis. O rolo de espoletas nunca girava certo dentro do revólver de brinquedo. O freio e o pezinho da bicicleta estavam sempre desajustados. Nosso leite não marcava o copo. Em nossas lanchonetes, os refrigerantes eram menores. E não havia ketchup ou mostarda extra. Nos restaurantes, a garçonete não passava pelas mesas servindo água ou café como cortesia.
Vislumbrar a ideia original do objeto sem jamais poder usufruir dele inteiramente gerava uma sensação constante de falta. Experimentávamos, desde muito cedo, a angústia da eterna incompletude nacional.
Víamos diante de nós o nosso próprio potencial. Mas nunca chegávamos lá.
Talvez houvesse um tanto de vandalismo naquele cenário cheio de espaços em branco. Mas havia também o mau planejamento das ações. A falta de concatenação entre ideia e execução. As perenes lacunas dos pequenos e grandes projetos brasileiros.
E tudo que se perde nesse caminho de frinchas. E tudo que emerge dessa mistura de má provisão com desperdício de recursos: iniciativas sem acabativas, pouco compromisso com os resultados, ausência de disciplina, desprezo pela eficiência, baixa resiliência.
Aquele era um Brasil novinho em folha, recém-inaugurado, ainda cheirando a cal. (E ufanista.) Mas que já se mostrava inoperante.
Na tenra infância, eu só via as coisas que os olhos alcançavam. Mas é possível que também houvesse pontes ligando o nada ao lugar nenhum, bibliotecas sem livros, laboratórios sem tubos de ensaio, repartições sem qualquer razão de existir.
Havia muitas plaquinhas de bronze cravadas em paredes e em pedras fundamentais, com o nome dos responsáveis pelas inaugurações. E, por trás das placas, um bocado de entregas irregulares.
Em outros países, mesmo as coisas velhas, com muita rodagem, pareciam funcionar. Se estavam ali, era para servirem de verdade. Ou seriam tiradas de cena. A gente convivia todo dia com aquelas promessas não-cumpridas, com aquelas ofertas imperfeitas.
Não havia um claro "sim, temos", nem um claro "não, não temos" – vivíamos num eterno "quase", presos à imprecisão do "talvez". E havia nisso uma angústia à parte. Uma dificuldade de definir nossa própria identidade – exatamente onde estávamos e quem éramos em relação a outros povos, de que patamar precisaríamos partir para evoluir como sociedade.
Isso, de certa forma, persiste até hoje. Não somos um país desenvolvido. Ao mesmo tempo, também não estamos no fim da fila. Não somos uma nação rica, mas também não somos um país pobre. Em São Paulo há mais helicópteros do que em Nova York – e há regiões com índice de desenvolvimento humano similar ao de países miseráveis. Não somos europeus, nem africanos, não somos um tigre asiático, nem um país latino e hispânico. Somos um pouco de tudo isso – e, ao mesmo tempo, nada disso.
Desconfio que aquelas peças faltantes, que aquelas instalações inoperantes, que aquelas entregas meia-boca presentes nas minhas recordações mais verdes, contribuíram, ao longo dos últimos cinquenta anos, para a consolidação da ausência de confiança do brasileiro no governo, nas empresas, nas instituições, no vizinho, no síndico, em qualquer coisa.
Afinal, havia uma certa prosperidade acontecendo ao redor, mas ela não chegava até nós. Coisas nos eram oferecidas, mas elas vinham incompletas – muitas vezes inutilizáveis. Depois, quando reavemos a chance de eleger nossos governantes, nova esperança – mas a vida do brasileiro também não melhorou como deveria.
Continuamos sendo um país que cobra muito caro e entrega muito pouco – por quase tudo. Continuamos perdidos. A meio caminho. Com a sensação de que não estamos avançando. Que não sabemos para onde ir nem como avançar.
Para mim, aquelas maquetes vivas da minha infância, com suas peças faltantes, funcionam como uma metáfora do Brasil de ontem e de hoje – há uma estrutura com grande potencial diante da gente, que, pela falta de algumas engrenagens fundamentais, simplesmente não conseguimos fazer funcionar.
Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Draft Canada. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.
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