Adriano Silva http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br Só mais um site uol blogosfera Tue, 30 Jun 2020 07:00:04 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A dor e o medo que só as mulheres conhecem http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/2020/06/30/a-dor-e-o-medo-que-so-as-mulheres-conhecem/ http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/2020/06/30/a-dor-e-o-medo-que-so-as-mulheres-conhecem/#respond Tue, 30 Jun 2020 07:00:04 +0000 http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/?p=377  

 

Tem ameaças que pairam como sombra sobre todos nós. E outras que pairam muito mais pesadamente sobre as mulheres – ou exclusivamente sobre elas.

Se você é homem e ainda não se deu conta disso, coloque-se no lugar da sua mãe. Que muito provavelmente foi criada sob a noção de que sexo, para mulheres, é fardo e vergonha. Ou então moeda de troca, um serviço que se presta aos homens, em troca de alguma segurança material.

Coloque-se no lugar da sua mulher. Que com frequência tem mais dificuldade para conseguir um bom emprego do que seus pares de sexo masculino. Ou que, quando consegue a vaga, não está livre de ganhar menos do que os homens em funções semelhantes.

Coloque-se no lugar da sua filha. Que é vista por boa parte dos machos como um prêmio sexual a ser conquistado – ou como um alvo para agressões verbais, que ficam muito próximas da agressão física. (O assédio tem muito menos a ver com sexo do que com violência.)

Toda mulher brasileira tem algum tipo de experiência com assédio.

Na rua. No transporte. Na escola. No escritório. No clube. No restaurante. À noite. De dia. Ao sair de casa. Na portaria. No táxi. E também dentro de casa.

No modo como é olhada ou ignorada, como falam com ela ou como lhe deixam falando sozinha, como não lhe deixam falar ou como se referem a ela.

Esses dias escrevi sobre isso.

Não é confortável para uma mulher brasileira caminhar sozinha na rua. Não é simples a uma mulher usar a roupa que bem entender. Nem ir ao cinema ou ao bar sozinha. Nem tomar um táxi ou esperar o ônibus sozinha.

Mulher tem que sorrir mais do que os homens para sobreviver socialmente. E ser delicada quando queria mandar a real. E não dizer diretamente quando a situação pedia que se dissesse na lata.

Mulher tem que figurar sempre bonita, bem vestida, maquiada, alinhada, perfumada – coisas que não são exigidas dos homens são pré-requisitos para as mulheres.

 

As relações de poder estão aí. E nos tensionam em nossas trocas com as pessoas ao redor. As mulheres não são as únicas pessoas a serem constrangidas, e a se deixarem constranger, em sua relação com gente mais poderosa. E há mulheres opressoras também, inclusive em sua relação com outras mulheres.

E, como acontece com todo grupo discriminado por uma característica fortuita, é espantoso que a questão de gênero possa, por si só, garantir tanta dor de cabeça às mulheres.

Um extraterrestre recém-chegado ao planeta ficaria com a impressão de que a vagina é um azar, de que a vulva é um carma, de que um par de mamas é uma maldição.

Lembro de uma mulher, que morava ao lado da casa de meus avós, no interior do Rio Grande do Sul, onde eu passava as férias. Ela apanhava do marido. Já era o início dos anos 80. Ela gritava dentro da casa fechada. E ninguém atendia. Todos silenciavam. Era como se fosse um assunto íntimo, familiar, no qual ninguém devesse interferir. A ninguém jamais ocorreu chamar a polícia. Inclusive porque o marido era um policial militar.

Mais acima naquela mesma rua, alguns anos antes, no final da década de 70, morava uma família de agricultores. O homem batia na mulher, na frente dos três filhos pequenos, que tentavam defendê-la dos murros do pai. O homem às vezes era ajudado em sua rotina pelo pai – dela.

E tinha aquela menina, minha amiga de infância, que apanhava do irmão na rua, em cena aberta. A mãe a queria no quintal de casa. Ela fugia para brincar com a gente. O irmão era o capitão-do-mato que a capturava. E o feitor que a castigava.

Tantas histórias tenebrosas. Tantos testemunhos do horror imposto às mulheres.

 

Minha mulher, num dos primeiros encontros profissionais que teve no Canadá, com uma consultora que ajudava na adaptação cultural dos talentos recém-chegados ao país, disse algo assim: “No Brasil talvez você fosse vista como uma mulher. Aqui você será vista como um indivíduo”.

É uma frase cheia de significados. De um lado, faz ver que, num ambiente gender neutral, somos pessoas, apenas pessoas, semelhantes em tudo umas às outras, muito antes de sermos entendidos, ou nos posicionarmos, como homens ou mulheres. Num ambiente neutro em relação ao gênero, você vale pelo que faz e diz e sabe – não pelo tipo de genitália que tem no meio das pernas.

De outro lado, aquela frase faz ver o quanto ainda somos sexistas no Brasil. Das roupinhas azuis ou rosas ao gesto de abrir a porta do carro ou deixar o outro pagar a conta (ou todas as contas, se colocando em posição de doce dependência). Da cintura dura dos homens, como quem tivesse que mover por aí, por via das dúvidas, com o fiofo permanentemente trincado, aos trejeitos lânguidos das mulheres, como se tivessem a obrigação de ser sempre suaves, invaginantes, macias.

E não é fácil para uma mulher brasileira se despir dessa prisão de gênero. (Assim como não é fácil às mulheres japonesas escaparem ao grilhão de serem sempre kawaii – doces, adoráveis, fofas, queridinhas.) Essa é uma roupa com a qual a mulher fica tão acostumada que já sente como se fosse a sua pele.

No Brasil, ser “feminina”, o que inclui doses reforçadas de sensualidade – coisa que é bacana como escolha e horrível como imposição –, se confunde com a própria identidade de boa parte das nossas mulheres desde muito cedo na vida.

(Quando você escapa a essa ditadura da roupa, da boca, do cabelo, da unha, das curvas e fendas, e a vaidade passa a ser uma propriedade sua e não um imposto que você precisa pagar aos outros, a sensação parece ser muito libertadora.)

 

Tive uma coluna, por alguns anos, nas revistas Nova e Marie Claire, em que escrevia cartas às mulheres a partir da perspectiva de um amigo sincero – e não de um oponente no jogo sexual. Sempre me considerei um homem feminista e achava que as colunas ofereciam às leitoras a cumplicidade de um olhar masculino, não-machista, ao universo feminino.

Hoje, passados 15 anos, penso que muitos daqueles textos seriam impublicáveis – por tolos ou por reforçarem, mesmo que inadvertidamente, padrões de comportamento baseados em preconceitos, mesmo que funcionais.

O mundo parece ter evoluído, e muito, e para o lado certo, nas duas últimas décadas. Mas ainda falta um bocado.

(Para um homem da minha geração – faço 50 daqui a pouquinho –, a melhor coisa a fazer é admitir que você não sabe mais o que dizer nem como agir, e que é preciso reaprender, lá do início, a lidar com as mulheres e a se movimentar dentro das novas perspectivas de gênero.)

Antigamente, dar-se ao respeito era, para as mulheres, uma imposição machista. Hoje, dar-se ao respeito é uma urgência feminista.

E o que é feminismo? Respeitar as mulheres. Tão simples quanto isso. Acreditar que não há qualquer diferença entre os gêneros que justifique direitos e deveres e possibilidades distintas entre homens e mulheres. Ponto.

É fundamental que tenhamos cada vez mais homens feministas. E ainda mais importante que cada vez mais mulheres também o sejam.

 

Leia também: Três coisas que você precisa dizer às pessoas que lhe são importantes

 

Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Draft Canada. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.

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A autodeterminação dos povos é implacável e revela muito sobre o Brasil http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/2020/06/16/a-implacavel-autodeterminacao-dos-povos-revela-muito-sobre-o-brasil/ http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/2020/06/16/a-implacavel-autodeterminacao-dos-povos-revela-muito-sobre-o-brasil/#respond Tue, 16 Jun 2020 07:00:11 +0000 http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/?p=371  

Foto: EPA-EFE/ANTONIO LACERDA

Foto: EPA-EFE/ANTONIO LACERDA

 

Os estadunidenses querem o governo longe da sua casa. É uma questão histórica, profundamente arraigada à cultura daquele país.

O sagrado direito à posse de armas nos Estados Unidos, por exemplo, não está baseado na defesa de um cidadão diante do possível ataque de outro cidadão – 75% dos estadunidenses que possuem armas entendem que a Segunda Emenda da sua Constituição expressa um direito à defesa individual contra a “tirania”, ou seja, contra uma possível agressão do governo.

A discussão por lá nem chega a ser o uso exclusivo da força pela autoridade constituída – o Estado – versus o direito individual de defender a própria integridade usando para isso o melhor recurso à disposição – no caso, uma arma.

Nos Estados Unidos, a questão é anterior: trata-se de uma desconfiança do cidadão, montado nas prerrogativas da liberdade individual, em oposição à própria autoridade – eles querem o direito civil de poder defender a si e a sua família inclusive do Estado.

Então é apenas compreensível que muitos estadunidenses tenham se insurgido, desde o começo da crise do Covid-19, contra leis e governos que tentem se imiscuir nas suas sagradas prerrogativas de ir e vir, ou de abrir as portas dos seus negócios.

 

No Canadá, onde vivo, os cidadãos têm uma relação de confiança maior com seus governantes. Eles tendem a acreditar mais nas suas autoridades. Nutrem mais disposição a dar sua contribuição individual para o bem-estar da coletividade. O senso de comunidade é mais forte no Canadá. Espera-se que você siga as orientações e que abra mão de privilégios particulares em nome do bem comum.

Delinquentes que quebram essa regra de responsabilidade compartilhada e de boa convivência não conseguem se esconder atrás de uma aura de malandros adoráveis ou de heróis do self-made-manship – são vistos como cuzões mesmo, como gente egoísta que não dá a mínima para os outros.

 

Já os brasileiros costumam ter confiança zero nas autoridades. Os poderosos sempre operaram pela própria locupletação, sempre trabalharam unicamente pelos seus interesses de classe, dando uma banana para o resto da sociedade. Então a gente simplesmente não acredita no que eles dizem. (Até quando dizem barbaridades a gente acha que não é de verdade – e depois se surpreende quando eles levam a cabo as ameaças que fizeram e que a gente não levou a sério.)

Lembro de um taxista, pacato senhor de cabelo escovinha e bigode fino, respeitável pai de família, que passava o cinto de segurança – mas não o fechava. Ou seja: ele tinha todo o trabalho de realizar aquela ação, mas não a completava. Tinha gosto por sabotar a regra. Numa espécie de resistência silenciosa à lei. (Ou simplesmente pelo prazer da contravenção.)

O brasileiro, de modo geral, vive em constante estado de desobediência civil. E a gente nunca sabe quando isso é resistência heroica à opressão da vez ou mero espírito de porco. (Ou banditismo puro e simples.)

A malandragem brasileira pode ser entendida como um mecanismo de autodefesa, construído historicamente, diante de um sistema injusto. E pode significar também a mais absoluta (auto)sacanagem.

Como nunca confiamos nas instituições, que nunca funcionaram pelo bem-comum, a lei entre nós é ignorar a lei. E atuar no modo cada um por si, cada qual resolvendo o seu e passando por cima do outro.

Por isso os sistemas, em geral, não funcionam bem no Brasil: um sistema precisa que cada um dê um pouco de si para que a engrenagem funcione bem para todos. A nação de cada brasileiro é o seu núcleo familiar. E ponto. Para lá dos meus pais, irmãos, filhos e netos, é terra estrangeira. É país inimigo.

Se sociopata é aquela pessoa absolutamente insensível em relação ao outro, incapaz de sentir ou exercer empatia, que vive numa bolha individual autossuficiente, em regime de profundo e frio egocentrismo, pronta para cometer atrocidades sem sentir qualquer remorso, bem, somos um país de sociopatas.

 

Leia também: Antídoto contra dias sombrios: valorize cada pequena conquista

 

Daí a quarentena, o isolamento, o lockdown, o distanciamento social, terem fracassado entre nós. A pandemia requereu dos brasileiros alguns gestos coletivos, de união entre todos, muito difíceis de acontecer no Brasil: a gente não reconhece a coletividade, não existe a ideia de comunidade, o todo é uma abstração inalcançável, o outro é um estranho – que nos causa mais desconfiança do que compaixão.

Bolsonaro dispensa comentários em sua estultice, em sua insensibilidade, em sua desumanidade. No entanto, apesar da contribuição perversa que esse governo deu aos números mórbidos do coronavírus no Brasil, ele não é a causa da burrice e do autoritarismo em curso no Brasil – ele é uma expressão desses comportamentos que habitam a alma do brasileiro médio.

A gestão da crise foi inepta. A atuação oficial, estúpida. As falas e os gestos presidenciais, criminosos. Mas isso não explica nem justifica as ruas cheias de gente, os engarrafamentos em saída de feriado, a sanha por lotar shopping centers.

Não me refiro, evidentemente, a quem não pode ficar em casa, por razões econômicas – mas a quem tinha condições de permanecer em casa e não ficou. Me refiro aos 3,9 milhões brasileiros das classes A e B que se inscreveram para receber os 600 reais da ajuda emergencial do governo, e postaram em suas redes sociais fotos dos churrascos realizados ao redor de piscinas com esse dinheiro que deveria estar socorrendo gente na base da pirâmide.

Me refiro às famílias de classe média que exigiram que suas empregadas domésticas comparecessem ao trabalho, como se não fossem seres humanos cujas vidas merecessem ser resguardadas, mesmo que para isso tivessem que tirar seus próprios filhos de casa (alguns para morrer sob a indiferença negligente dos patrões), porque gente de bem é incapaz de lavar a própria louça e de limpar o próprio banheiro.

Não existe álibi para isso em governo algum. A culpa por isso é nossa. Bolsonaro é apenas um outro crime de lesa-pátria que cometemos. Honestamente, não estamos em posição de apontar o dedo a ninguém. Os filhos da puta somos nós.

 

Como pano de fundo, um funcionamento tipicamente brasileiro: a sensação de que nada vai nos acontecer; de que deus não apenas existe, mas também é brasileiro; de que sempre daremos um jeito. Exatamente por isso, deixamos de prevenir. Temos verdadeiro horror ao planejamento. Deixamos tudo para o improviso, para o jeitinho, para a gambiarra. Esperamos que a divina providência venha nos salvar. Como resultado, só atuamos depois que a tragédia já se estabeleceu.

Tapamos os buracos, colamos um esparadrapo, amarramos um arame. Enterramos os corpos. E assim vamos batucando – deixa a morte me levar, morte leva eu – até a próxima tragédia.

Isso vale para as enchentes em São Paulo, para os deslizamentos de terra no Rio, para toda sorte de má sorte no país. Como esperar que com o Covid pudesse ser diferente?

 

E assim cada país vai construindo a sua história. O Canadá teve uma curva de contaminação e de mortes muito parecida com o Brasil, nos primeiros 30 dias a contar da primeira morte. Passaram-se outros 50 dias, e hoje o Brasil representa quase 25% das mortes diárias do planeta – mais de 1 000 mortes por dia, em média, contra 50 mortes diárias no Canadá.

Total de mortes por coronavírus, no Canadá, até 13 de junho: 8 100. Total de mortes no Brasil até essa data: 41 900. É bastante possível que o Canadá não chegue a registrar 10 000 mortos. Qual será a marca brasileira? Sessenta mil mortos? Oitenta mil?

Nada acontece à toa. Se temos esses números, é porque os construímos. Por escolha ou por omissão. Nas eleições ou no dia a dia. Não importa. Toda ação tem consequência. Toda inação também. Num ambiente democrático, em que podemos autodeterminar nosso destino, somos responsáveis tanto pelas conquistas quanto pelas catástrofes que nos sucedem.

 

Leia também: A pior pandemia em curso hoje no Brasil é a da burrice e do coice

 

Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Draft Canada. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.

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A advertência dos generais é uma ameaça inadmissível à democracia http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/2020/05/24/a-advertencia-dos-militares-e-seria-ameaca-a-democracia/ http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/2020/05/24/a-advertencia-dos-militares-e-seria-ameaca-a-democracia/#respond Mon, 25 May 2020 01:59:02 +0000 http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/?p=360

Bolsonaro volta e meia sinaliza que o Exército está com ele e que as Forças Armadas não hesitarão em “cumprir seu dever”, caso necessário.

São ameaças que até ontem soavam como mais uma das bravatas do capitão. (O problema é que ele parece acreditar nos absurdos que diz e vai transformando essas bravatas, uma a uma, em realidade – para o espanto já não justificável de gente como eu, que sempre achou que, no fundo, não era possível levar uma pessoa assim a sério.)

À medida que Bolsonaro vai sendo confrontado, no jogo democrático, pelos outros Poderes (Legislativo e Judiciário) e pelas demais instituições do país (imprensa, OAB), ele parte para a afronta – da própria democracia.

Nos últimos dias, com a temperatura política do país tendo aumentado muito com a revelação do vídeo da reunião ministerial, Bolsonaro passou a receber alguns apoios explícitos dignos de nota:

– Na sexta, 22 de maio, o General Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, divulgou nota em que afirma que o pedido de apreensão do celular do presidente (no bojo das investigações sobre a tentativa de interferência política de Bolsonaro na Polícia Federal, em inquéritos relacionados a sua família) é “inconcebível”, “inacreditável” e alerta que tal medida “poderá ter consequências imprevisíveis”.

– No sábado, 23, o General Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa, endossou a nota do Gabinete de Segurança Institucional e afirmou que as Forças Armadas concordam com o teor da declaração assinada pelo General Augusto Heleno.

– No domingo, 24, um grupo de generais da reserva, da “Turma Marechal Castello Branco”, formada na Academia de Agulhas Negras em 1971, divulgou uma nota que começa assim: “Alto lá, ‘ministros’ do STF!” (perceba o termo ministros entre aspas), em tom raivoso, em que falam de “grave risco de crise institucional, com desfecho imprevisível, quiçá, na pior hipótese, guerra civil”.

 

Eu completo 50 anos daqui a alguns meses. E não lembro, desde a redemocratização do país, de um militar fazendo alertas quanto ao risco de descontinuidade do regime democrático.

A ameaça de uma interferência militar – isso, sim, coisa “inconcebível”, “inacreditável” e que certamente teria “consequências imprevisíveis” ao país – parece ser mais um daqueles termos impronunciáveis que Bolsonaro naturalizou, mais uma daquelas conversas inaceitáveis que ele normalizou.

Primeiro você diz o absurdo. Arranca-o do silêncio ao pronunciá-lo. Aí você o repete. E então ele se institucionaliza, passa a ocupar lugar na realidade. Quando nos damos conta, já estamos tratando o absurdo como assunto corrente, admitindo-o como hipótese.

Pode ser que essa advertência feita por dois generais-ministros, e endossada por algumas dezenas de generais da reserva, septuagenários formados no período mais truculento da Ditadura Militar brasileira, não represente a opinião majoritária das Forças Armadas. Pode ser que nada disso represente ameaça real de um levante militar no Brasil.

Mas a palavra foi dita. O assunto foi matriculado. O bode, de algum modo, entrou na sala.

O que o Supremo Tribunal Federal e a Procuradoria-Geral da República farão diante da ameaça dos militares? Irão recuar? O que as Forças Armadas farão se o STF e a PGR seguirem fazendo o seu trabalho?

Como a Câmara e o Senado vão se posicionar? E os empresários?

E você, como vai reagir?

 

As ameaças dos generais, e os argumentos por trás de suas ameaças, são muito parecidos com o que se dizia antes de 1º de abril de 1964.

Naquela época, como o tempo deixou claro, havia entre nós uma maioria conservadora que apoiou o golpe com seu medo e seu reacionarismo. O mundo experimentava uma revolução progressista nos costumes e em outros campos da vida; o Brasil escolheu se esconder em 1930, no velho regime – como um retorno ao Estado Novo, só que em versão tenentista.

Diante da possibilidade de iluminar as discussões sobre os rumos do país, nossos avós escolheram apagar a luz. Somos uma sociedade violenta; uma parte importante da alma brasileira é autoritária e adora seguir um pai-patrão-pastor que simplifique tudo e nos conduza pelo cabresto pasto afora.

Hoje, quase 60 anos depois, parece haver em torno de 30 milhões de eleitores que estão fechados com aquelas mesmas bandeiras antidemocráticas e truculentas. E que estão dispostos a retroceder no tempo também, e se esconder no passado, para perpetuar os valores em que acreditam.

Esses milhões de brasileiros de espírito integralista desprezam conquistas como direitos civis, liberdades individuais, prerrogativas constitucionais, liberdade de expressão e de opção sexual, igualdade racial e de gênero.

Essa turma deseja exatamente tudo isso que Bolsonaro tem apresentado nesses 18 meses de governo: “Criacionismo. Negacionismo de crimes históricos. Oposição aos métodos e resultados da ciência. Armamentismo. Ceticismo sobre mudança climática. Machismo. Racismo. Homofobia”, na síntese de Luís Augusto Fischer, em sua newsletter Parêntese, citando um texto de Reinaldo José Lopes, na Folha de S.Paulo.

A base bolsonarista – que representa a soma do pensamento mais atrasado entre nós – apoia o presidente em sua declaração de guerra contra tudo que não lhe é favorável. E busca exercer nas ruas, com as próprias mãos, a supressão de adversários. E deseja que o presidente e seu gabinete do ódio ampliem e recrudesçam suas ações.

Lembro de um primo – evangélico, como tantos em minha família – que escreveu, quando da eleição, algo como: “Graças a Deus conseguimos aplicar um golpe militar para endireitar o país sem precisar dar um tiro nem derramar sangue”. Talvez essa seja a declaração mais branda e “democrática” que se possa esperar de um bolsonarista.

É possível que esses milhões de brasileiros venham a colocar Bolsonaro no segundo turno em 2022. Assim como é possível que eles sejam vistos, e se vejam, como a sustentação popular necessária à instalação de um regime antidemocrático no Brasil.

Me pergunto se não é exatamente assim que se constrói um regime autoritário nos dias que correm. Espalhando milícias pelo país. Armando essas milícias. Espalhando desinformação. Criando uma guerra de narrativas. Operando com o medo e a ignorância das pessoas. Enfraquecendo as instituições. Absolutizando o Poder Executivo, personificando a Presidência. Partindo para a briga com todo mundo.

Nós chocamos o ovo da serpente. E não de modo desavisado. Muitos brasileiros queriam mesmo vê-la (re)nascer.

 

Eis o que penso: ou rechaçamos o absurdo ou ele vira norma. Ou recusamos certas ameaças e certos procedimentos e pronunciamentos, ou estaremos permitindo que eles se instalem entre nós. Ou enfrentamos a barbárie ou ela vencerá a batalha contra a civilização.

Já sabemos que por volta de 25% dos brasileiros acreditam que o que Bolsonaro fez até agora é motivo suficiente para reelegê-lo. A questão que fica é: quantos brasileiros discordam e creem que, ao contrário, o que Bolsonaro fez até aqui é motivo suficiente para o impeachment?

 

Me vejo escrevendo tudo isso e achando absurdo grafar essas palavras. Apenas conjeturar sobre uma ruptura institucional dessa monta, a essa altura da história do país, e da minha vida, é absolutamente surreal.

Gosto de imaginar que a História anda para frente. E que a democracia no Brasil seja uma realidade inquestionável. E que as instituições no país sejam suficientemente fortes para que esse tipo de hipótese não possa sequer ser considerada.

No entanto, tenho me surpreendido tão negativamente com meu país que já não sei mais dizer onde fica o limite do possível.

 

Leia também: A pior pandemia em curso hoje no Brasil é a da burrice e do coice

 

Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Draft Canada. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.

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A pior pandemia em curso hoje no Brasil é a da burrice e do coice http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/2020/05/12/a-pior-pandemia-em-curso-hoje-no-brasil-e-a-da-burrice-e-do-coice/ http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/2020/05/12/a-pior-pandemia-em-curso-hoje-no-brasil-e-a-da-burrice-e-do-coice/#respond Tue, 12 May 2020 07:00:26 +0000 http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/?p=351

A Alemanha nazista produzia nazistas. A Alemanha reunificada produz gente com pensamento humanista e solidário.

O Japão imperial era uma sociedade xenófoba, guerreira e invasora. O Japão que emergiu das cinzas da Segunda Guerra trouxe à luz um povo pacífico e cosmopolita.

Ideias são vírus que se espalham rapidamente entre as pessoas. (O significado original de “meme”, cunhado por Richard Dawkins, é esse – conceitos são como genes lutando para se perpetuar; para quem você e eu, indivíduos, somos mera plataforma de reprodução.) Da mesmíssima forma, comportamentos se espalham entre nós por contágio.

O Canadá, país que vim a conhecer recentemente, estimula as pessoas a serem respeitosas umas com as outras. Então, se você está no Canadá, você tende a respeitar mais a individualidade alheia. É contagioso.

Você já ouviu que muitos brasileiros mudam de comportamento no exterior. No Brasil, param em fila dupla e jogam lixo no chão. No estrangeiro, se tornam cidadãos um pouco melhores.

O contrário também é verdade. A tendência de um dinamarquês no Brasil é em breve estar avançando no sinal amarelo ou subempregando uma mucama em sua casa – coisas impensáveis no seu país.

AS PESSOAS SE TRANSFORMAM NAQUILO QUE DESEJAM SER. PAÍSES TAMBÉM.

A soma das ideias que preponderam num determinado lugar define os limites do que é socialmente aceito ou não naquele ambiente. Desde estacionar ilegalmente em vagas especiais até linchar alguém na rua. Desde mentir na televisão (ou via Whatsapp) até estuprar a própria mulher e espancar os filhos no sacrossanto ambiente do lar.

O Brasil expresso na estética da Bossa Nova, naquela promissora virada dos anos 50 para os 60, era um país ensolarado, lírico, liberal, prazenteiro. Construíamos (nem que fosse só na música e na poesia) um lugar elegante em sua delicadeza, sedutor em sua suavidade, sofisticado em sua simplicidade, casual na modernidade e no cosmopolitismo que propunha. E como a gente se enxergava assim, a gente acabava agindo assim também. A gente se via representado dessa forma e acabava se transformando naquilo que via.

Hoje vivemos como nunca num país liderado pelo ódio. Muitos brasileiros passaram a cultivar a intolerância em suas interações sociais, a abraçar a incivilidade em suas rotinas. E a vibrar com o tosco, aplaudir a grosseria. E a chafurdar no pensamento religioso, desprezando o raciocínio científico. E a recusar a racionalidade e a inteligência em nome de qualquer simplificação que exorcize a complexidade. E a abraçar o negacionismo, dando uma banana para os fatos – como se o direito de expressar uma opinião nos permitisse ignorar evidências e renegar dados.

Veja que nada disso descende de Brasília. Nós é que colocamos tudo isso lá. O Brasil não se resume a seus governantes – mas nossos governantes são um espelho do Brasil.

AS IDEIAS QUE VOCÊ DISSEMINA VOLTAM PARA VOCÊ COMO UM AFAGO – OU COMO UM SOCO

As ideias surgem de nós. Elas não se inventam sozinhas nem nos inventam – nós é que as criamos. Mas quando elas saem de nós, e se espalham, convencendo pessoas, gerando novos convertidos, elas como que ganham vida própria. Vão mutando, ganhando novas nuances em sua construção interna, agregando novos argumentos, aumentando sua resistência a críticas. Até que algumas delas se tornam hegemônicas. Viram pandemia. E aí definem as feições que certas sociedades terão ao longo de certo tempo.

Pense num país como um aglomerado de pessoas que cultivam um bocado de ideias diferentes – e que são influenciadas por elas. Essas ideias são “memes” que disputam hospedeiros entre si o tempo todo. Algumas delas, em algum momento, eclodem, e se tornam hegemônicas por determinado período. Até perderem força e voltarem a seu estágio dormente. Ideias não desaparecem. Elas apenas hibernam por alguns períodos.

Para quem tem filhos, escolher bem o contexto cultural em que eles serão criados é uma medida essencial que a gente no mais das vezes subestima. Você não ficaria tranquilo em criar seus filhos num lugar insalubre para a sua saúde física, coalhado por vírus, bactérias e micróbios.

Então é apenas razoável que você também não fique tranquilo em criar seus filhos em um lugar insalubre ao comportamento ético e à convivência social civilizada, marcado pelo ódio, pela ofensa, pelo preconceito.

Eis o ponto: a higiene e as boas condições de um determinado lugar precisam estar presentes também em seu entorno social.

Se o Brasil fosse uma praia, teria hoje um enorme aviso de “condições impróprias para o banho” fincada na areia. Vale frisar: não somos vítimas dessa temporada sombria – nós a escolhemos.

A INCIVILIDADE E A ESTUPIDEZ NUNCA FORAM TÃO HEGEMÔNICAS NO BRASIL

Você é a média das pessoas com quem convive. Seus filhos também. Hoje, e já desde há alguns anos, o ambiente brasileiro está marcado por uma pandemia – da ignorância e do coice. Admitimos a truculência de peito aberto, fizemos o elogio da agressão. E agora temos esse ambiente burro e brutal em que estamos criando nossos filhos.

Supondo que você seja um democrata, um liberal, um humanista, de qualquer plumagem, ou que simplesmente não seja um idiota completo ou um xucro inelutável, será preciso discutir muito, dentro de casa, as atitudes e os valores em que você acredita. E mais do que defender com palavras uma certa conduta para a sua família, será preciso exercê-la, dar o exemplo, mostrar na prática de que lado você está.

Porque a influência da rua, da escola, do clube, do shopping, da política, nesse momento do país, é deletéria. (Veja: o Brasil sempre esteve amigado com a incivilidade, nunca recusamos de verdade, por princípio, a barbárie. Mas, ao mesmo tempo, esses elementos nunca foram tão hegemônicos quanto nesse momento de nossa História. Nunca vimos o ódio ser tão aplaudido por tanta gente nas ruas, sob a luz do sol.)

Esse tipo de coisa penetrará a trama da roupa dos seus filhos, e se aderirá à pele deles, e buscará entrar por osmose em seus organismos, para lhes ganhar a alma.

Esse contágio – da estupidez, da brutalidade, da cretinice – é o pior dos riscos que corremos hoje no Brasil.

(Foto: Claudia Martini.)

Leia também: Quarentena: entre as incertezas do futuro e o falso conforto do passado

 

Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Draft Canada. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.

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Antídoto contra dias sombrios: valorize cada pequena conquista http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/2020/04/14/antidoto-contra-dias-sombrios-valorize-cada-pequena-conquista/ http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/2020/04/14/antidoto-contra-dias-sombrios-valorize-cada-pequena-conquista/#respond Tue, 14 Apr 2020 07:00:47 +0000 http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/?p=344  

Se a tremenda importância de ser feliz todo dia lhe soar algo óbvio, parabéns.

Se encontrar regozijo nas pequenas coisas for algo comum em sua vida, receba o meu abraço e o meu aviso: esse texto não é para você.

Escrevo para todas as demais pessoas que com frequência esquecem de que é preciso ser feliz hoje – e não amanhã.

E de que é preciso curtir o que você está fazendo e quem você é agora – e não trancafiar a sua alegria dentro de um objetivo futuro.

Muita gente esquece disso. Ou releva a importância disso.

Especialmente quem é estoico, como eu.

Funciona assim: diante da dificuldade, você fica ainda mais austero. Engrossa o couro. Franze o cenho. Cerra os punhos. E se prepara para enfrentar a intempérie colocando os sorrisos em quarentena até o céu desanuviar.

A questão é que, ao deixar de sorrir, ao impor ainda mais contrição à sua vida, você não faz o sol voltar a brilhar mais rápido. Você só aumenta seu próprio sofrimento durante o período de sombras.

Deixe eu lhe dizer, de raçudo para raçudo ou raçuda: ache o que lhe faz feliz. (Se não souber, descubra.) Saboreie. Reconheça. Repita. Se permita. Sem culpa.

Isso é fundamental. Inclusive como combustível para atravessar o vale de agruras. Como alento necessário para a manutenção de sua saúde mental.

Você não estará sendo menos responsável nem menos comprometido se se permitir alguns instantes de felicidade em meio à faina.

Cultivar momentos de alegria significa apoiar a si mesmo durante a batalha.

A hora é de segurar os gastos. Mas não os abraços. Nem os gestos de carinho, as demonstrações de afeto, as palavras de conforto ou de incentivo.

A hora é de ser solidário, de acolher, de não deixar ninguém atrás das linhas inimigas – a começar por você mesmo.

 

Estamos atravessando um momento muito puxado da história humana. 2020 será um ano de perdas para todo mundo. Perderemos pessoas queridas, milhares de vidas mundo afora, empregos, finanças pessoais, proximidade física com amigos e familiares, empreendimentos.

Mas não precisamos perder a autoconfiança. Nem o gosto pela jornada que cada um de nós está empreendendo. Nem o entusiasmo para seguirmos trabalhando. Ao contrário: precisaremos de muita energia, precisamente agora, para ir adiante, retomar o passo, reinventar a vida.

Mais do que nunca, será preciso defender o seu prazer individual de estar vivo. E redescobrir, nos pequenos detalhes do cotidiano, aquilo que lhe faz feliz. É isso, sobretudo, que teremos para compartilhar uns com os outros – esperança. E daí que virá a força coletiva para retomarmos nossas rotinas.

Todos nós já vivemos e ainda viveremos passagens ásperas em nossas vidas. Ainda assim, uma catástrofe global pode nos ensinar – ou nos lembrar – como superar momentos duros e sombrios.

É ótimo cultivar metas vultosas. Sonhar grande e bonito. Mas é um erro relegar sua felicidade a esses bilhetes de loteria trancafiados em cofres colocados no alto de postes.

Essa freada brusca na economia mundial, e o cavalo de pau que ela impõe em nossas carreiras, pode servir para reavaliarmos um pouco o modo como estamos vivendo. Nossos hábitos. Os sonhos que decidimos sonhar. Os valores que abraçamos. Onde, afinal, estamos investindo nosso sangue e nosso suor.

Em períodos assim, de grande incerteza e desconforto, é importante (re)descobrir aquilo que lhe faz bem. Regozijar diante dos passos mais simples. Reconhecer os avanços, por menores que sejam. Comemorar cada pequena vitória.

 

A proximidade com os filhos. A manutenção da saúde de todos em sua casa. Um abraço apertado. Um olhar que vai encontrar o outro lá no fundo do olho. Um telefonema mais longo para quem está longe. Ir para o chão com o caçula.

A continuidade de um contrato. Trabalhar mais de perto com o time, com os clientes, com os fornecedores.

A oportunidade de continuar trabalhando – ou então de procurar um trabalho melhor. A continuidade do seu emprego – ou a chance de finalmente empreender aquele negócio que você guarda na gaveta.

Revisar os gastos e perceber o tanto de coisas que você não precisa. Redescobrir roupas que há muito você não usava. E, ao ir às compras de modo mais seletivo, comer menos e melhor. Prestando mais atenção ao que você está comendo. Cozinhando o alimento que você vai ingerir.

Começar a estudar algo diferente, aprender algo que você não sabia. Ter, talvez, algum tempo extra para ler bons livros.

Reservar 30 minutos por dia para fazer abdominais, flexões e alongamento – e ver que essa rotina simples lhe faz bem.

Cuidar da casa distribuindo as tarefas em família – e ver que esse trabalho em equipe é bom.

Prestar atenção ao que estão lhe dizendo. E ao que não lhe dizem. Ponderar as palavras que entram pelos seus ouvidos – e as que saem da sua boca.

Prestar atenção às pessoas ao redor. Aos seus gestos. A como reagem com o olhar e com o corpo. E aos sorrisos – os dos outros e os seus – que emergem tanto na mesa de jantar quanto na sala de videoconferência.

Deixar que as pessoas que você ama saibam o quanto você as ama.

Ser generoso com quem lhe procura. Dar de si tudo o que você tiver para dar.

E ser grato por um gesto de acolhimento, pela simpatia com que lhe brindarem, por qualquer abertura de porta ou ajuda recebida.

E aprender a retribuir tudo isso. Ou melhor ainda: tomar a inciativa de ajudar. Oferecer a mão a alguém antes que alguém lhe ofereça a mão.

Recusar os comportamentos tóxicos que estão dentro de você. E que ferem os outros ao redor. E que lhe corroem por dentro.

Apreciar elementos fundamentais à vida nesse planeta que a gente em geral ignora: o azul do céu, o calor do sol, o frescor da brisa, a sensação boa da noite caindo depois de um longo dia de trabalho.

E se deleitar com um gole de água fresca. E com o sabor de uma fruta comida aos poucos.

 

Nada disso significa apequenar seus padrões. Aliás, esqueça essa história de “aumentar a altura da barra”. A vida não é uma prova de salto em altura.

Isso também não implica ser piegas. Esqueça essas poses autossuficientes, artificialmente charmosas e falsamente bem resolvidas que abundam nas redes sociais.

Estou falando aqui apenas de (re)aprender a viver. De exercer a sua humanidade. De ser mais feliz. Com os outros. E consigo mesmo.

 

Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Draft Canada. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.

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Quarentena: entre as incertezas do futuro e o falso conforto do passado http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/2020/04/01/entre-as-incertezas-do-futuro-e-o-falso-conforto-do-passado/ http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/2020/04/01/entre-as-incertezas-do-futuro-e-o-falso-conforto-do-passado/#respond Wed, 01 Apr 2020 13:58:45 +0000 http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/?p=334 Estamos, nesse momento, no estômago da quarentena. O mundo não voltará a funcionar na semana que vem. É possível que atravessemos todo o mês de abril no porão. Mas a verdade é que ninguém sabe nem quando nem como voltaremos à normalidade de nossas vidas e carreiras.

Trabalho sem endereço comercial – ou seja, em home office – há dez anos. Ao longo dessa década, tenho cocriado com dezenas de pessoas, em vários negócios, em três empresas, em dois países. A virtualidade é um ganho de eficiência digital ao qual estou acostumado.

Ou seja: o distanciamento físico causado pela pandemia de coronavírus é só mais um dia na vida. Mesmo assim, esse período tem sido desafiador. Pelo risco de doença e de morte, entre os meus, que estão longe de mim, e entre todos os demais. E por todas as dúvidas e receios com que todos temos ido dormir e com os quais acordamos no dia seguinte, sem encontrar resposta ou lenitivo.

O duro nesse período, com tudo fora de esquadro, é lidar com os pensamentos e os sentimentos que afloram dentro da gente vestidos como verdugos.

UM BALAIO DE INCERTEZAS EM RELAÇÃO AO FUTURO

Sim. Claro. Eu conheço a receita. Viver aqui e agora. O dia de hoje. No lugar onde você está. Sendo quem você é. Fazendo aquilo que você pode com os recursos que você tem. Para não sofrer à toa, cheio de ansiedade, querendo antecipar o futuro – e nem cheio de nostalgia, querendo reviver o passado.

Sim. Claro. Mas como é fácil escorregar desse plano tão simples e óbvio… especialmente quando o presente se apresenta tão duro.

Confesso que sempre estive um pouco desajustado em relação ao tempo. Faz parte de quem eu sou. Viajar no tempo, como uma fuga de encarar o hoje, é um (mau) hábito da minha mente.

Curiosamente, em minha sanha escapista, sofro mais com o passado do que com o futuro.

Sou em geral confiante em relação ao que virá. Mas em alguns momentos, quando minha sensibilidade ao risco fica mais acirrada por qualquer motivo (crises reais ou imaginárias, perigos iminentes ou não), o porvir vira grande fonte de preocupação.

É que gosto de planejar os movimentos, de ponderar as hipóteses, de traçar os cenários. Tenho sido, vida afora, um tomador de riscos. Não tenho prazer específico em andar na corda bamba. Mas nunca deixei de empreender decisões relativamente ousadas, em nenhum campo da vida.

Sempre tive disposição para saltar do penhasco – desde que os riscos estivessem bem medidos. E sempre que essa sensação de relativo controle me escapou, a insônia azedou meu travesseiro.

(Curiosamente, quando tudo foge absolutamente ao controle, quando é impossível prever cenários, a ansiedade diminui. Como agora, nessa crise mundial inédita. Não há o que fazer senão seguir vivendo e reagir ao que virá. Então estamos prontos, exatamente porque não há como se aprontar. Ei, e se adotássemos essa postura para todo tipo de ansiedade? Talvez essa avalanche sirva, paradoxalmente, para a gente aprender a ficar mais tranquilo, e perceber que o que quer que venha acontecer, a gente dará um jeito.)

O PASSADO COMO UM ESCAPE DAS AGRURAS DO PRESENTE

Olhar para trás, ao contrário, sempre me machucou mais do que olhar para frente. Aos 9 anos senti saudade do ano de 1978 – quando eu tinha 7. E tem sido assim desde então. Saudade, aprendi, é só apreço por um trecho da vida que já não ameaça, por estar vivido, por estar vencido, por ser conhecido.

Por isso, nostálgicos sentem saudade até mesmo de períodos da vida que não foram tão bons assim. Uma dor pretérita, dominada, machuca menos do que a ansiedade diante do futuro (mesmo quando a folha em branco à nossa frente tem 50% de chances, ou mais, de revelar alguma coisa boa).

Saudade não é apenas amor ao que passou – é o desejo de encontrar um esconderijo, de recusar as brigas marcadas na agenda para hoje, de se refugiar numa fotografia que promete estabilidade e controle em sua eterna fixidez.

Nostalgia é um pedido de asilo temporário das durezas do presente na idealização que fazemos do passado. É reassistir a um filme clássico por medo de se decepcionar com os novos lançamentos.

À medida que avanço em direção à maturidade, e vou me compreendendo melhor, os picos de melancolia tem ficado mais espaçados. (Talvez eu tenha alongado a curva da melancolia e ela tenha se tornado crônica.)

Por outro lado, talvez pelo fato de que há cada vez mais anos de vida atrás de mim do que à minha frente, a vertigem do tempo voando, escoando, deixando tudo para trás, parece ganhar força. A grande dor das coisas (e das pessoas) que não voltam mais parece se intensificar.

E não adianta retornar a lugares, reencontrar pessoas, ressuscitar situações – você, as pessoas, os lugares e as situações não são mais os mesmos. (Obrigado, Heráclito.)

Ou a gente abraça a impermanência, e trata de abandonar o passado, com todo o amor de mundo, e trata de enterrar o que já foi, com todo o zelo, ou estaremos fadados a sofrer muito – e inutilmente.

A vertigem do tempo tem vindo, para mim, desde que saí do Brasil, acompanhada de uma prima-irmã: a vertigem espacial. Vivi trechos importantes da minha vida em diferentes lugares. Tenho parte do meu coração enterrado em meia-dúzia de cidades em três continentes.

Da mesma forma que uma vida longa, como a que vivemos hoje, tende a aumentar a vertigem do tempo, um mundo pequeno, ultraconectado, com acesso físico e virtual facilitado, tende a aumentar a vertigem do espaço.

Quando você muda de lugar, de cidade, de país, essa sensação de estar um pouco perdido no mundo se agudiza.

O processo de adaptação a uma nova vida, num lugar diferente, toma tempo. Por mais que você já tenha vivido essa experiência antes, você nunca viaja só com o seu guardarroupa – você transporta suas raízes para onde quer que vá.

Então há uma sensação de degredo. Você não pertence mais ao lugar que deixou, mas ainda não pertence ao lugar para onde veio. Você perde uma identidade e demora a construir outra. Seu entorno muda. E você precisa mudar também. Ou estará condenado a ser eternamente estrangeiro.

Há um sentimento de exílio. Você está longe de tudo. Vive num limbo. Os antigos laços lhe puxam para trás. E é preciso lutar contra a força dessa marcha à ré permanentemente engatada. Ao mesmo tempo, o novo ambiente resiste a lhe permitir estabelecer novos laços. Ou lhe cobra caríssimo por eles. E será preciso lutar também contra essa força reativa e impor a sua marcha à frente.

Sob pena de você jamais vir a desembarcar de verdade no novo lugar. E jamais desfazer a mala simbólica que traz dentro de si.

 

Esses têm sido meus dias de quarentena até aqui. Tentando viver o aqui e o agora e um tantinho fustigado pela vertigem do tempo e do espaço.

E os seus dias de isolamento, nessa proximidade às vezes insalubre consigo mesmo, como têm sido?

 

Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Draft Canada. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.

 

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Viver é trabalho duro – que nenhum medicamento tornará mais fácil http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/2020/03/24/viver-e-trabalho-duro-que-nenhum-medicamento-tornara-mais-facil/ http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/2020/03/24/viver-e-trabalho-duro-que-nenhum-medicamento-tornara-mais-facil/#respond Tue, 24 Mar 2020 13:24:07 +0000 http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/?p=318  

O Allan Sieber, que tem o poder da síntese e a agressividade dos bons cartunistas, publicou esses dias esse post.

Eu tenho escrito um bocado sobre as dores existenciais. Desde uma perspectiva de quem as enfrenta (quase) todo dia – não sou profissional da área de saúde e nem especialista no tema. (Tento, no máximo, aprender sobre mim mesmo e sobre as minhas próprias dificuldades diante da vida.)

A força dessa condensação do Allan me lembrou de um texto que escrevi há uns anos, “Por que desconfio tanto dos psiquiatras”, que está no meu livro Ansiedade Corporativa.

Me lembrou, também, de uma articulista que certa vez se ressentiu da minha visão sobre o modo como nos relacionamos com o sofrimento psíquico, e sobre como o tratamos, e escreveu um texto, colando algumas frases minhas, em seu espaço na Folha de S.Paulo, sem referenciar a fonte nem citar o autor  o que considerei uma falta grave, do ponto de vista jornalístico.

Reclamei com ela em público e terminamos nos bloqueando nas redes sociais. Uma pena. Não tivemos chance de conversar. Minha tese talvez tenha lhe soado agressiva. Talvez ela a tenha tomado como ofensa pessoal, como se eu estivesse pontificando sobre o seu sofrimento, quando eu estava apenas falando do meu.

Tudo isso para dizer que, ao tecer as linhas que seguem, torço para que as pessoas que as lerem, especialmente os amigos que por ventura convivam com algum nível de sofrimento psíquico (todos?), não se sintam desconfortáveis com as opiniões que eu vier a emitir.

Tudo que eu não quero com essa argumentação sobre ansiedade, dor e depressão é estimular ainda mais ansiedade, dor e depressão. Como sempre, as reflexões que compartilho nesse espaço têm a ver comigo, e estão direcionadas, antes de tudo, a mim.

Busco expor aqui os meus próprios fantasmas na esperança de que essas conversas possam, de alguma maneira, contribuir para que você lide melhor com os seus.

Vejo com preocupação o modo como lidamos com a saúde mental. Se de um lado estamos tirando esse assunto das sombras, o que é ótimo, de outro lado estamos transformando tudo em distúrbios, desordens, transtornos e síndromes.

Se de um lado estamos quebrando alguns tabus – há poucos anos era vergonhoso ir ao psicólogo, as famílias escondiam em casa gente com depressão, e nem havia o conceito de “ansiedade” como o conhecemos hoje –, de outro lado estamos transformando em doença aspectos da condição humana que sempre estiveram e sempre estarão conosco.

Conhecemos pouco o cérebro humano. E é altamente provável que, assim como há rins e medulas e fígados que não produzem corretamente seus hormônios e enzimas, também haja cérebros que produzam substâncias químicas a mais ou a menos do que deveriam.

No entanto, está em curso uma tendência forte de tornar biológico o que é comportamental, de tornar físico o que é emocional – ou então de separar as duas coisas, que são na verdade indissociáveis.

Quando você é arrebatado por um sentimento, aprazível ou torturante, seu corpo reage com uma série de descargas químicas. Mais: são esses hormônios e enzimas que lhe fazem efetivamente sentir aquela sensação boa ou ruim.

E tudo isso começa com um gatilho: algo que você disse ou fez, ou deixou de dizer ou fazer. Algo que lhe disseram ou fizeram, ou deixaram de lhe comunicar ou oferecer. Um medo, uma expectativa, uma raiva. Um amor não correspondido. Uma inveja mortal. O tédio, o vazio, o cansaço. A ausência de respostas, a falta de sentido, o excesso de preocupações.

Então, onde reside a dor psíquica: na substância química liberada pelo cérebro ou no gatilho comportamental que detonou esse processo?

Tenho a sensação de que hoje estamos tratando com medicação uma infinidade de casos que têm a ver apenas com o modo como estamos vivendo nossas vidas – e não com disfunções orgânicas. Estamos bombardeando com drogas pesadas cérebros que não estão desregulados quimicamente. (Ou que ao menos não estavam até o início do tratamento…)

Quando você passa a usar medicação para tentar controlar sentimentos, seja pacificando na porretada medicamentosa uma angústia ou então gerando uma euforia artificial, você está se enganando – com o apoio interessado, e capcioso, da medicina psiquiátrica e da indústria farmacêutica.

Para resolver sensações que emanam da vida, que não advém de desequilíbrios metabólicos, é preciso mexer nas circunstâncias da vida que as causam. Só que isso exige reflexão, autoconhecimento – e ação. Mudar um sentimento recorrente exige mudança efetiva de hábitos – que é um processo sempre muito árduo.

Então é muito mais fácil tomar um comprimido e mergulhar por algumas horas no simulacro químico de uma vida melhor. Só que a vida continua a mesma. Quando a gente acorda, estamos no mesmo lugar. Não resolvemos nada.

Vivemos tempos de hedonismo, de praticidade, de conveniência. Os comprimidos se encaixam nessa filosofia: eles são o fast food da felicidade, uma entrega rápida de humor na porta de sua casa. A comida é ruim, mas tem o apelo irresistível de permitir a você matar a fome provisoriamente, sem precisar cozinhar – e nem mesmo levantar do sofá. Mínimo esforço, resultado imediato.

E é assim que drogas que deveriam ser bastante restritas viram pílulas da felicidade para todo mundo. (A proporção de cérebros que não funcionam bem sozinhos é provavelmente tão pequena quanto a de baços ou vesículas que não cumprem corretamente a sua função). E é assim que nossas dificuldades diante da vida, absolutamente humanas, com as quais precisamos aprender a lidar, viram patologia a ser bombardeada pelos laboratórios.

A medicalização da vida reflete também a crença tácita de que a doença física é de algum modo mais honrosa do que o sofrimento mental.

A doença física, na maior parte das vezes, é uma contingência que empresta ao paciente uma aura de herói da resistência. Uma condição que você revela com orgulho aos outros e que atrai solidariedade e admiração.

Já o sofrimento mental é, na maioria dos casos, visto como uma fraqueza de caráter. Como se você fosse o culpado pela dor que sente. Como se a sua dor não fosse importante ou nem tivesse a sua existência reconhecida pelos outros. Como se ela fosse, enfim, vexatória: uma condição associada à tibieza ou à incompetência. Uma condição que você, em decorrência disso, tentará esconder do julgamento, da desconfiança e da desaprovação dos demais.

A transformação do sofrimento mental em doença física é também, portanto, uma estratégia que visa ganhar aceitação social. Nossa boa e velha dor de existir ganha mais respeitabilidade se for batizada como moléstia, ganhar nome científico e for catalogada pela OMS.

Para a nossa dor ser compreendida é preciso haver doença. Assim como é preciso haver doença para produzir, vender e consumir medicamentos. Então cunhamos uma doença – e uma penca de drogas – até mesmo para domesticar crianças criativas e cheias de energia. Elas, por exemplo, passam a ser pacientes de TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade). E nós dopamos sem cerimônia sua curiosidade e sua sede de vida.

Outro exemplo notável: se você tem uma relação tóxica com o trabalho, você ganha logo um avental branco com a seguinte inscrição: Síndrome de Burnout (ou Síndrome do Esgotamento Profissional). Tem sigla e código para isso. O diagnóstico: você está sofrendo de um distúrbio emocional. Ou seja: o problema está em você, no seu desajuste ao mercado – e não nas condições insalubres à sua volta.

Em vez de você recusar a pressão que lhe está sendo imposta pelos outros, ou por você mesmo, em sua vida profissional, você se transforma num paciente. E assim, ao invés de se mover, de mudar a sua rotina, você fica exatamente onde está, continua se machucando, sob a ideia de que está acometido por uma doença”.

Ao seguir fazendo as coisas do mesmo jeito, o sofrimento só aumenta. E, com ele, a quantidade de medicamentos requeridos no tratamento”.

Ao fazê-lo, recusamos o volante de nossas próprias vidas: de sujeitos das ações que nos tornam mais felizes, ou francamente infelizes, passamos a nos colocar como vítimas de um elemento externo – uma moléstia.

O combate psiquiátrico aos nossos inimigos íntimos, que não raro passamos a lamber como feridas de estimação, e que no fundo somos nós mesmos travestidos dos lobos que nos devoram por dentro, nos faz crer que é possível combater qualquer dor psíquica com drogas que atuam diretamente no nosso sistema nervoso central.

Para cérebros que reconhecidamente estão alterando quimicamente a percepção da realidade do seu dono, talvez não haja mesmo alternativa a essas perigosas bengalas químicas – que têm uma pá de efeitos colaterais e deixam sequelas. Para todos os outros casos, parece que estamos tratando a angústia humana como uma bactéria que pudesse ser erradicada para sempre, em nível físico-químico, do nosso organismo.

E aí deixamos de realizar o essencial: mexer nos comportamentos que nos machucam, alterar os funcionamentos que nos agridem, romper com relações opressivas (muitas vezes do sujeito com ele mesmo), sair de situações desconfortáveis, deixar de alimentar emoções tóxicas. Nós somos os responsáveis por tudo isso. E essas são situações que só nós poderemos alterar. Não dá para fazer nada disso chapado.

Há um outro post com que cruzei há um tempo e que sintetiza esse exercício – fácil de visualizar e dificílimo de fazer:

Somos, quase todos nós, autores das tramas em que estamos enredados. E a condição “normal”, para a nossa espécie, inclui um bocado de insatisfação e de sofrimento. Por isso, para a maioria dos seres humanos, a verdade é que não faz sentido sofrer sozinho, na condição de paciente, um mal que aflige a todos nós. A dor de pensar e de sentir e de se relacionar e de viver é, em boa medida, um traço constitutivo do seu DNA e do meu.

Escrevo isso com amor. Empatia. Cumplicidade. Solidariedade. Estou dentro do barco, estou no remo ao seu lado.

Que possamos falar mais sobre sofrimento psíquico uns com os outros. Compartilhar esses sentimentos que nos chacoalham e que tantas vezes não conseguimos compreender – nem de onde vêm, nem por que mexem tanto conosco. Em família. Entre amigos. No cafezinho com os camaradas do trabalho.

Que possamos nos conhecer mais. Expor mais aos outros a nossa verdade. Que possamos acolher mais aos outros também. Mais papo-reto, mais olho no olho. Por uma vida menos ordinária do que ostentar sorrisos nas redes sociais e acumular caixas de remédio tarja-preta no criado-mudo.

A quem precisa ajustar o hardware, desejo um médico honesto e consciencioso e que respeite a sua dignidade e que o trate com cuidado e transparência.

A quem precisa ajustar o software, desejo a lucidez de não martelar a placa-mãe, quando suas peças delicadíssimas não contêm nenhum problema estrutural, em nome de fazer o computador funcionar melhor.

A esses, turma a que me filio, desejo a humildade de seguir aprendendo a viver e a serenidade de perceber que existir dói. A gente pode aprender a lidar com isso. Inclusive com ajuda profissional. Mas essa dor, no limite, não tem cura – como se cura a condição humana?

Não é fácil crescer, nem envelhecer. Não é fácil casar, nem separar. Não é fácil ter filhos, nem ser filho. Não é fácil sofrer por alguém, nem ver alguém sofrendo. Não é fácil ser chefe, nem ter chefe. Não é fácil ser empresário, nem funcionário.

E nada está garantido. E o mundo não é justo. E vamos morrer sem achar um sentido para a vida. E o inferno são os outros – mas o purgatório também está dentro de você.

Enfim: viver é difícil. Viver é complicado. Viver é muito perigoso.

E, no entanto, só nos resta viver.

Aprender sobre os gatilhos que detonam a sua ansiedade, abrir mão da ilusão de controle, não se cobrar tanto, esquecer um pouco dos outros, tentar se conhecer melhor, experimentar coisas e pessoas e lugares novos, manter o foco no presente, mudar de emprego ou de carreira ou de cidade ou de país ou de amigos sempre que isso lhe parecer a melhor solução, recusar relacionamentos abusivos ou mutuamente destrutivos (inclusive aqueles que você estabelece consigo mesmo).

Trabalho duro. Coisa que nenhuma substância fará por você.

 

Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Draft Canada. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.

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Saber da própria morte lhe paralisa ou, ao contrário, dobra sua velocidade? http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/2020/03/17/saber-da-propria-morte-lhe-paralisa-ou-ao-contrario-dobra-sua-velocidade/ http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/2020/03/17/saber-da-propria-morte-lhe-paralisa-ou-ao-contrario-dobra-sua-velocidade/#respond Tue, 17 Mar 2020 13:01:26 +0000 http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/?p=315  

Esses dias escrevi sobre a velhice e o fim da vida. E sobre como transformar a longa reta final numa oportunidade para dizer coisas fundamentais às pessoas que foram fundamentais em sua vida: muito obrigado, me desculpe, eu te perdoo.

Há outro viés nessa conversa. A consciência da própria finitude pode ter dois efeitos na vida da gente. De um lado, saber que a morte está logo adiante, numa esquina qualquer dessa avenida por onde rodamos, pode lhe acelerar, lhe emprestar energia extra para imprimir ainda mais velocidade à sua trajetória – afinal, não há nada a fazer senão viver muito e viver tudo antes que acabe. Nesse caso, o fim funcionaria como um combustível de alta octanagem.

De outro lado, isso pode lhe frear – afinal, que sentido há em construir qualquer coisa sabendo que você não vai durar? Por que despender tanta energia no que quer que seja se amanhã você pode cair duro – e se em três ou quatro gerações ninguém terá a mais vaga ideia de que você um dia existiu? Nesse caso, o fim é o absurdo incontornável, que torna tudo sem sentido, que tira o propósito de qualquer projeto.

Bem, uma terceira via seria simplesmente não pensar nisso. Ignorar a ideia do fim – ou o quão distante ou perto você está dele hoje. Ou ainda: acreditar que a morte não existe – o tipo de consolo oferecido pelas religiões.

Acho que estou no primeiro time. A morte sempre funcionou para mim como um estímulo para dirigir vida afora com o pé no fundo. Sempre soube que meu tempo era curto. E nunca deixei que esse assombro me paralisasse – ao contrário, havia muita coisa que eu queria fazer, então sabia que era preciso correr.

Acabo de passar pela metade da vida. Numa imagem futebolística, diria que estou jogando, nesse momento, aos 10 minutos do segundo tempo de uma partida sem prorrogação nem pênaltis. Quando o cronômetro chegar aos 45, se tudo der certo, terei mais alguns minutos de acréscimo, com possibilidade talvez até de um último gol, se ainda tiver saúde para tentar um arremate.

E então soará o apito e as luzes serão desligadas e o estádio (que nunca recebeu grande público e que estará provavelmente vazio) desaparecerá da face da Terra, comigo dentro, instantaneamente. Tchau. Ponto final. Silêncio. Vazio. Oblívio.

À medida que passo pela meia-idade – ano que vem faço 50 – e avanço em direção à maturidade, é curioso perceber como o longo prazo vai se tornando mais curto. Você passa a ter mais tempo atrás de si do que à sua frente. Você está mais perto do fim da vida do que do começo.

Há cada vez menos espaço para pensar o que eu posso fazer da vida, para sonhar com quem eu posso ser na vida. Eu já tomei as grandes decisões sobre o que fazer da vida. Eu já encaminhei aquilo que tive condições de ser na vida. Não há mais muito tempo nem energia para novos planos e voos. Os caminhos já estão grandemente definidos.

Esse é um aspecto assustador da maturidade: a redução do espaço do sonho, o cardápio mais estreito das fantasias – elas que já representaram um vasto menu de grandes opções. As realizações (conquistas que obviamente me inspiram orgulho e gratidão) tiram naturalmente o espaço das possibilidades. Então há menos inventividade à frente, e mais manutenção.

Ser jovem é ter feito pouco, é ter ainda tudo por fazer diante de si. Ser velho é já ter feito um bocado, e não ter muito mais o que fazer, ou não reunir mais as condições para seguir fazendo. (E eu sinto mais o peso do mundo hoje, entrando na condição de um velho que já resolveu um bocado de questões, do que há 30 anos, como um jovem que ainda tinha tudo a resolver.)

Por tudo isso, é comum imaginarmos que a crescente proximidade da morte seja uma péssima notícia, prenhe de sentimentos ruins. Preciso dizer que não é bem assim. Ou, ao menos, não é apenas isso.

Ingressar no outono da vida também traz boas sensações. Ter menos tempo à frente, por exemplo, reduz a ansiedade do porvir. Antes de matar o presente, a morte mata o futuro. E o futuro é o grande desconhecido, o pai da ansiedade, onde mora grande parte do medo de viver. Então, a morte resolve o longo prazo, esse torvelinho indecifrável, esse enorme bicho papão.

Tem uma hora em que você não se preocupa mais com o amanhã, porque ele não é mais um ativo do qual você precise cuidar, no qual você precise investir. Ao erodir o futuro, a morte faz o imenso favor de trazer nossa atenção para o presente. E de sublinhar que só nos resta a réstia do dia, e que o presente é o nosso único banquete. A morte nos faz valorizar o hoje. E é assim que ela nos ajuda a viver mais e melhor.

Isso pode representar uma alforria para os controladores, aquele tipo de ansioso que não descansa enquanto não arrumar todas as suas gavetas – o que, diga-se, é sempre uma ilusão. A morte nos deixa ver que não controlamos nada. Não sabemos nem  mesmo quando ou como nossa própria existência vai acabar. Então, de novo, só nos resta relaxar e viver bem o tempo que nos couber, qualquer que seja ele.

Claro, há a ansiedade da finitude. A tristeza de ter que ir embora. Claro, há a melancolia de lembrar de tudo que ficou para trás. De tudo que você fez – ou que não fez e poderia ter feito. De todas as versões de você que você não foi e poderia ter sido.

Mas a morte não implica necessariamente medo, perda ou dor. Essas são coisas que pesam sobre quem está vivo, não sobre quem morre naturalmente. O fim também pode significar alívio, descanso e solução. E trazer a sensação reconfortante de que tudo tem seu lugar e de que tudo tem o seu tempo. E de que existe o momento de chegar, o momento de acontecer e o momento de partir. E de que o “para sempre” é um fardo pesado demais.

Sim, a angústia da morte existe. Mas ela não é mais espinhosa do que a angústia de estar vivo. É preciso aprender a viver (e a morrer). E então seguir em frente.

 

Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Draft Canada. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.

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Quantas mulheres você assediou no último ano? http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/2020/03/08/quantas-mulheres-voce-assediou-no-ultimo-ano/ http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/2020/03/08/quantas-mulheres-voce-assediou-no-ultimo-ano/#respond Sun, 08 Mar 2020 18:17:23 +0000 http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/?p=329 Faço essa pergunta de peito aberto: que mulher nunca foi assediada no Brasil?

Não é um recurso estilístico, não é um título chamativo, é uma pergunta que faço de boa-fé. Querendo ouvir respostas, conhecer depoimentos.

Considere o assédio físico. A brutalidade contra a mulher. Soco, tapa, empurrão. Tiro, facada, ácido, ferro quente. O lugar por excelência do feminicídio no Brasil é o lar. O pilar da nossa sociedade cristã. O refúgio dos nossos cidadãos de bem. O que põe o marido, e o pai, e os irmãos e primos e agregados, como os maiores agressores de mulheres entre nós.

Mas não olhe para o lado. Pense em quantas vezes você não foi de algum modo violento ao se relacionar com as mulheres da sua família, ou em seu círculo mais íntimo. Quantas vezes você viu e não denunciou.

Considere o assédio sexual. A palavra pegajosa, invasiva. O toque hediondo, intrusivo. O exercício da força masculina contra a vontade feminina. A imposição do desejo do homem sobre o desejo da mulher. A hegemonia do “sim, agora, do meu jeito” sobre o “não é não”. Jugo. Agressão. Estupro.

Mas não olhe para o lado. Pense em quantas vezes você não forçou a barra, você não exigiu o que queria como se ela fosse sua propriedade ou como se ela lhe devesse alguma coisa. Quantas vezes você não a desrespeitou e subtraiu dela o direito de tomar decisões autônomas sobre a sua libido e o seu corpo. Quantas vezes você não ficou sabendo e se calou.

Considere o assédio moral. A violência verbal. A humilhação por meio de substantivos ofensivos, e de adjetivos cortantes, ou de um tom de voz desrespeitoso, ou de um volume de voz opressivo. Xingamentos. Chantagem. Vitupérios.

Mas não olhe para o lado. Pense em quantas vezes você não se dirigiu de modo indigno a uma mulher, só porque ela era mulher. Quantas vezes isso não aconteceu diante de você e você nada fez.

Considere o assédio profissional. O salário muitas vezes menor pago a mulheres em funções em que homens ganhariam mais. O sexismo de posições subservientes, de apoio e suporte a homens, desenhadas para serem ocupadas por mulheres. O sexismo de atividades ainda associadas prioritariamente a obrigações femininas, e que homens evitam fazer, com uma espécie de privilégio de gênero – limpar a casa, cozinhar, cuidar da roupa e das crianças.

Considere a relativa ausência de mulheres em cargos de alta direção nas empresas. E a falácia de características “masculinas” e “femininas” de comportamento e de gestão que no mais das vezes só servem para reforçar preconceitos.

Mas não olhe para o lado. Pense em quantas vezes você não fez uma proposta mais acanhada a uma profissional só porque ela era mulher. Pense em quantas vezes você duvidou da capacidade de um talento, ou o preteriu numa promoção, porque não se tratava de um homem. Pense em quantas vezes você viu isso acontecer ao seu lado, e não disse nada, nem fez nada, apenas engrossou o silêncio conivente do escritório.

Por isso tudo pergunto: que mulher brasileira nunca foi assediada?

E mais: quantas mulheres brasileiras você assediou? De quantos assédios você participou, mesmo que indiretamente? Quantas vezes você não discriminou? Quantas vezes você não solapou direitos e acrescentou obrigações na conversa simplesmente porque o interlocutor era uma mulher?

Mas não olhe para o lado. Não olhe apenas para os homens. Várias dessas perguntas eu gostaria de dirigir a você também, que é mulher. Como você tem tratado as mulheres – a começar por si mesma?

 

Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Draft Canada. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.

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A angústia da eterna incompletude nacional http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/2020/03/03/a-angustia-da-eterna-incompletude-nacional/ http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/2020/03/03/a-angustia-da-eterna-incompletude-nacional/#respond Tue, 03 Mar 2020 13:01:27 +0000 http://adrianosilva.blogosfera.uol.com.br/?p=310  

Minhas primeiras lembranças do Brasil são da década de 70, vêm do miolo da Ditadura Militar, dos últimos anos do Milagre Brasileiro.

Trago de lá uma sensação nítida: havia muitas coisas em volta que não funcionavam. Me refiro especificamente a objetos comuns, físicos, do dia a dia, que estavam ali para cumprir um objetivo e não cumpriam.

Bebedores sem água. Chafarizes secos. Interruptores na parede que não acionavam nada. Teclas sem utilidade. Fios misteriosos desligados. Relevos escavados na parede para abrigar alguma coisa que não estava ali. Compartimentos vazios. Porta-coisas sem as coisas que deveriam portar. Recipientes ocos. Travas e tramelas sem trinco ou encaixe. Pracinhas abandonadas ao mato. Gangorras sem assento. Tabelas de basquete sem aro. Postes sem a rede de vôlei. Quadra sem bola. Buracos no chão para atarraxar elementos que nem sabíamos como seriam ou para que serviriam.

Você via o desenho geral da coisa e entendia que ali deveria haver outro equipamento ou peça – mas ele não estava disponível. A presença da ausência se espalhava por toda parte – estávamos cercados desse pesado conceito filosófico.

Aqueles itens de baixa tecnologia, inacabados, nos mostravam como a vida poderia ser melhor e não era. Como vivíamos pela metade. Às vezes, num filme, víamos como aqueles mecanismos funcionavam – noutro país, que parecia sempre melhor e mais civilizado.

O maior déficit tecnológico brasileiro foi jamais termos tido entre nós aqueles fósforos que acendiam ao serem riscados com a unha ou na sola do sapato. Nossas capas de chuva não eram exatamente impermeáveis. O rolo de espoletas nunca girava certo dentro do revólver de brinquedo. O freio e o pezinho da bicicleta estavam sempre desajustados. Nosso leite não marcava o copo. Em nossas lanchonetes, os refrigerantes eram menores. E não havia ketchup ou mostarda extra. Nos restaurantes, a garçonete não passava pelas mesas servindo água ou café como cortesia.

Vislumbrar a ideia original do objeto sem jamais poder usufruir dele inteiramente gerava uma sensação constante de falta. Experimentávamos, desde muito cedo, a angústia da eterna incompletude nacional.

Víamos diante de nós o nosso próprio potencial. Mas nunca chegávamos lá.

Talvez houvesse um tanto de vandalismo naquele cenário cheio de espaços em branco. Mas havia também o mau planejamento das ações. A falta de concatenação entre ideia e execução. As perenes lacunas dos pequenos e grandes projetos brasileiros.

E tudo que se perde nesse caminho de frinchas. E tudo que emerge dessa mistura de má provisão com desperdício de recursos: iniciativas sem acabativas, pouco compromisso com os resultados, ausência de disciplina, desprezo pela eficiência, baixa resiliência.

Aquele era um Brasil novinho em folha, recém-inaugurado, ainda cheirando a cal. (E ufanista.) Mas que já se mostrava inoperante.

Na tenra infância, eu só via as coisas que os olhos alcançavam. Mas é possível que também houvesse pontes ligando o nada ao lugar nenhum, bibliotecas sem livros, laboratórios sem tubos de ensaio, repartições sem qualquer razão de existir.

Havia muitas plaquinhas de bronze cravadas em paredes e em pedras fundamentais, com o nome dos responsáveis pelas inaugurações. E, por trás das placas, um bocado de entregas irregulares.

Em outros países, mesmo as coisas velhas, com muita rodagem, pareciam funcionar. Se estavam ali, era para servirem de verdade. Ou seriam tiradas de cena. A gente convivia todo dia com aquelas promessas não-cumpridas, com aquelas ofertas imperfeitas.

Não havia um claro “sim, temos”, nem um claro “não, não temos” – vivíamos num eterno “quase”, presos à imprecisão do “talvez”. E havia nisso uma angústia à parte. Uma dificuldade de definir nossa própria identidade – exatamente onde estávamos e quem éramos em relação a outros povos, de que patamar precisaríamos partir para evoluir como sociedade.

Isso, de certa forma, persiste até hoje. Não somos um país desenvolvido. Ao mesmo tempo, também não estamos no fim da fila. Não somos uma nação rica, mas também não somos um país pobre. Em São Paulo há mais helicópteros do que em Nova York – e há regiões com índice de desenvolvimento humano similar ao de países miseráveis. Não somos europeus, nem africanos, não somos um tigre asiático, nem um país latino e hispânico. Somos um pouco de tudo isso – e, ao mesmo tempo, nada disso.

Desconfio que aquelas peças faltantes, que aquelas instalações inoperantes, que aquelas entregas meia-boca presentes nas minhas recordações mais verdes, contribuíram, ao longo dos últimos cinquenta anos, para a consolidação da ausência de confiança do brasileiro no governo, nas empresas, nas instituições, no vizinho, no síndico, em qualquer coisa.

Afinal, havia uma certa prosperidade acontecendo ao redor, mas ela não chegava até nós. Coisas nos eram oferecidas, mas elas vinham incompletas – muitas vezes inutilizáveis. Depois, quando reavemos a chance de eleger nossos governantes, nova esperança – mas a vida do brasileiro também não melhorou como deveria.

Continuamos sendo um país que cobra muito caro e entrega muito pouco – por quase tudo. Continuamos perdidos. A meio caminho. Com a sensação de que não estamos avançando. Que não sabemos para onde ir nem como avançar.

Para mim, aquelas maquetes vivas da minha infância, com suas peças faltantes, funcionam como uma metáfora do Brasil de ontem e de hoje – há uma estrutura com grande potencial diante da gente, que, pela falta de algumas engrenagens fundamentais, simplesmente não conseguimos fazer funcionar.

 

Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Draft Canada. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.

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