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Adriano Silva

Viver é trabalho duro – que nenhum medicamento tornará mais fácil

Adriano Silva

24/03/2020 10h24

 

O Allan Sieber, que tem o poder da síntese e a agressividade dos bons cartunistas, publicou esses dias esse post.

Eu tenho escrito um bocado sobre as dores existenciais. Desde uma perspectiva de quem as enfrenta (quase) todo dia – não sou profissional da área de saúde e nem especialista no tema. (Tento, no máximo, aprender sobre mim mesmo e sobre as minhas próprias dificuldades diante da vida.)

A força dessa condensação do Allan me lembrou de um texto que escrevi há uns anos, "Por que desconfio tanto dos psiquiatras", que está no meu livro Ansiedade Corporativa.

Me lembrou, também, de uma articulista que certa vez se ressentiu da minha visão sobre o modo como nos relacionamos com o sofrimento psíquico, e sobre como o tratamos, e escreveu um texto, colando algumas frases minhas, em seu espaço na Folha de S.Paulo, sem referenciar a fonte nem citar o autor  o que considerei uma falta grave, do ponto de vista jornalístico.

Reclamei com ela em público e terminamos nos bloqueando nas redes sociais. Uma pena. Não tivemos chance de conversar. Minha tese talvez tenha lhe soado agressiva. Talvez ela a tenha tomado como ofensa pessoal, como se eu estivesse pontificando sobre o seu sofrimento, quando eu estava apenas falando do meu.

Tudo isso para dizer que, ao tecer as linhas que seguem, torço para que as pessoas que as lerem, especialmente os amigos que por ventura convivam com algum nível de sofrimento psíquico (todos?), não se sintam desconfortáveis com as opiniões que eu vier a emitir.

Tudo que eu não quero com essa argumentação sobre ansiedade, dor e depressão é estimular ainda mais ansiedade, dor e depressão. Como sempre, as reflexões que compartilho nesse espaço têm a ver comigo, e estão direcionadas, antes de tudo, a mim.

Busco expor aqui os meus próprios fantasmas na esperança de que essas conversas possam, de alguma maneira, contribuir para que você lide melhor com os seus.

Vejo com preocupação o modo como lidamos com a saúde mental. Se de um lado estamos tirando esse assunto das sombras, o que é ótimo, de outro lado estamos transformando tudo em distúrbios, desordens, transtornos e síndromes.

Se de um lado estamos quebrando alguns tabus – há poucos anos era vergonhoso ir ao psicólogo, as famílias escondiam em casa gente com depressão, e nem havia o conceito de "ansiedade" como o conhecemos hoje –, de outro lado estamos transformando em doença aspectos da condição humana que sempre estiveram e sempre estarão conosco.

Conhecemos pouco o cérebro humano. E é altamente provável que, assim como há rins e medulas e fígados que não produzem corretamente seus hormônios e enzimas, também haja cérebros que produzam substâncias químicas a mais ou a menos do que deveriam.

No entanto, está em curso uma tendência forte de tornar biológico o que é comportamental, de tornar físico o que é emocional – ou então de separar as duas coisas, que são na verdade indissociáveis.

Quando você é arrebatado por um sentimento, aprazível ou torturante, seu corpo reage com uma série de descargas químicas. Mais: são esses hormônios e enzimas que lhe fazem efetivamente sentir aquela sensação boa ou ruim.

E tudo isso começa com um gatilho: algo que você disse ou fez, ou deixou de dizer ou fazer. Algo que lhe disseram ou fizeram, ou deixaram de lhe comunicar ou oferecer. Um medo, uma expectativa, uma raiva. Um amor não correspondido. Uma inveja mortal. O tédio, o vazio, o cansaço. A ausência de respostas, a falta de sentido, o excesso de preocupações.

Então, onde reside a dor psíquica: na substância química liberada pelo cérebro ou no gatilho comportamental que detonou esse processo?

Tenho a sensação de que hoje estamos tratando com medicação uma infinidade de casos que têm a ver apenas com o modo como estamos vivendo nossas vidas – e não com disfunções orgânicas. Estamos bombardeando com drogas pesadas cérebros que não estão desregulados quimicamente. (Ou que ao menos não estavam até o início do tratamento…)

Quando você passa a usar medicação para tentar controlar sentimentos, seja pacificando na porretada medicamentosa uma angústia ou então gerando uma euforia artificial, você está se enganando – com o apoio interessado, e capcioso, da medicina psiquiátrica e da indústria farmacêutica.

Para resolver sensações que emanam da vida, que não advém de desequilíbrios metabólicos, é preciso mexer nas circunstâncias da vida que as causam. Só que isso exige reflexão, autoconhecimento – e ação. Mudar um sentimento recorrente exige mudança efetiva de hábitos – que é um processo sempre muito árduo.

Então é muito mais fácil tomar um comprimido e mergulhar por algumas horas no simulacro químico de uma vida melhor. Só que a vida continua a mesma. Quando a gente acorda, estamos no mesmo lugar. Não resolvemos nada.

Vivemos tempos de hedonismo, de praticidade, de conveniência. Os comprimidos se encaixam nessa filosofia: eles são o fast food da felicidade, uma entrega rápida de humor na porta de sua casa. A comida é ruim, mas tem o apelo irresistível de permitir a você matar a fome provisoriamente, sem precisar cozinhar – e nem mesmo levantar do sofá. Mínimo esforço, resultado imediato.

E é assim que drogas que deveriam ser bastante restritas viram pílulas da felicidade para todo mundo. (A proporção de cérebros que não funcionam bem sozinhos é provavelmente tão pequena quanto a de baços ou vesículas que não cumprem corretamente a sua função). E é assim que nossas dificuldades diante da vida, absolutamente humanas, com as quais precisamos aprender a lidar, viram patologia a ser bombardeada pelos laboratórios.

A medicalização da vida reflete também a crença tácita de que a doença física é de algum modo mais honrosa do que o sofrimento mental.

A doença física, na maior parte das vezes, é uma contingência que empresta ao paciente uma aura de herói da resistência. Uma condição que você revela com orgulho aos outros e que atrai solidariedade e admiração.

Já o sofrimento mental é, na maioria dos casos, visto como uma fraqueza de caráter. Como se você fosse o culpado pela dor que sente. Como se a sua dor não fosse importante ou nem tivesse a sua existência reconhecida pelos outros. Como se ela fosse, enfim, vexatória: uma condição associada à tibieza ou à incompetência. Uma condição que você, em decorrência disso, tentará esconder do julgamento, da desconfiança e da desaprovação dos demais.

A transformação do sofrimento mental em doença física é também, portanto, uma estratégia que visa ganhar aceitação social. Nossa boa e velha dor de existir ganha mais respeitabilidade se for batizada como moléstia, ganhar nome científico e for catalogada pela OMS.

Para a nossa dor ser compreendida é preciso haver doença. Assim como é preciso haver doença para produzir, vender e consumir medicamentos. Então cunhamos uma doença – e uma penca de drogas – até mesmo para domesticar crianças criativas e cheias de energia. Elas, por exemplo, passam a ser pacientes de TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade). E nós dopamos sem cerimônia sua curiosidade e sua sede de vida.

Outro exemplo notável: se você tem uma relação tóxica com o trabalho, você ganha logo um avental branco com a seguinte inscrição: Síndrome de Burnout (ou Síndrome do Esgotamento Profissional). Tem sigla e código para isso. O diagnóstico: você está sofrendo de um "distúrbio emocional". Ou seja: o problema está em você, no seu desajuste ao mercado – e não nas condições insalubres à sua volta.

Em vez de você recusar a pressão que lhe está sendo imposta pelos outros, ou por você mesmo, em sua vida profissional, você se transforma num "paciente". E assim, ao invés de se mover, de mudar a sua rotina, você fica exatamente onde está, continua se machucando, sob a ideia de que está acometido por uma "doença".

Ao seguir fazendo as coisas do mesmo jeito, o sofrimento só aumenta. E, com ele, a quantidade de medicamentos requeridos no "tratamento".

Ao fazê-lo, recusamos o volante de nossas próprias vidas: de sujeitos das ações que nos tornam mais felizes, ou francamente infelizes, passamos a nos colocar como vítimas de um elemento externo – uma "moléstia".

O combate psiquiátrico aos nossos inimigos íntimos, que não raro passamos a lamber como feridas de estimação, e que no fundo somos nós mesmos travestidos dos lobos que nos devoram por dentro, nos faz crer que é possível combater qualquer dor psíquica com drogas que atuam diretamente no nosso sistema nervoso central.

Para cérebros que reconhecidamente estão alterando quimicamente a percepção da realidade do seu dono, talvez não haja mesmo alternativa a essas perigosas bengalas químicas – que têm uma pá de efeitos colaterais e deixam sequelas. Para todos os outros casos, parece que estamos tratando a angústia humana como uma bactéria que pudesse ser erradicada para sempre, em nível físico-químico, do nosso organismo.

E aí deixamos de realizar o essencial: mexer nos comportamentos que nos machucam, alterar os funcionamentos que nos agridem, romper com relações opressivas (muitas vezes do sujeito com ele mesmo), sair de situações desconfortáveis, deixar de alimentar emoções tóxicas. Nós somos os responsáveis por tudo isso. E essas são situações que só nós poderemos alterar. Não dá para fazer nada disso chapado.

Há um outro post com que cruzei há um tempo e que sintetiza esse exercício – fácil de visualizar e dificílimo de fazer:

Somos, quase todos nós, autores das tramas em que estamos enredados. E a condição "normal", para a nossa espécie, inclui um bocado de insatisfação e de sofrimento. Por isso, para a maioria dos seres humanos, a verdade é que não faz sentido sofrer sozinho, na condição de paciente, um mal que aflige a todos nós. A dor de pensar e de sentir e de se relacionar e de viver é, em boa medida, um traço constitutivo do seu DNA e do meu.

Escrevo isso com amor. Empatia. Cumplicidade. Solidariedade. Estou dentro do barco, estou no remo ao seu lado.

Que possamos falar mais sobre sofrimento psíquico uns com os outros. Compartilhar esses sentimentos que nos chacoalham e que tantas vezes não conseguimos compreender – nem de onde vêm, nem por que mexem tanto conosco. Em família. Entre amigos. No cafezinho com os camaradas do trabalho.

Que possamos nos conhecer mais. Expor mais aos outros a nossa verdade. Que possamos acolher mais aos outros também. Mais papo-reto, mais olho no olho. Por uma vida menos ordinária do que ostentar sorrisos nas redes sociais e acumular caixas de remédio tarja-preta no criado-mudo.

A quem precisa ajustar o hardware, desejo um médico honesto e consciencioso e que respeite a sua dignidade e que o trate com cuidado e transparência.

A quem precisa ajustar o software, desejo a lucidez de não martelar a placa-mãe, quando suas peças delicadíssimas não contêm nenhum problema estrutural, em nome de fazer o computador funcionar melhor.

A esses, turma a que me filio, desejo a humildade de seguir aprendendo a viver e a serenidade de perceber que existir dói. A gente pode aprender a lidar com isso. Inclusive com ajuda profissional. Mas essa dor, no limite, não tem cura – como se cura a condição humana?

Não é fácil crescer, nem envelhecer. Não é fácil casar, nem separar. Não é fácil ter filhos, nem ser filho. Não é fácil sofrer por alguém, nem ver alguém sofrendo. Não é fácil ser chefe, nem ter chefe. Não é fácil ser empresário, nem funcionário.

E nada está garantido. E o mundo não é justo. E vamos morrer sem achar um sentido para a vida. E o inferno são os outros – mas o purgatório também está dentro de você.

Enfim: viver é difícil. Viver é complicado. Viver é muito perigoso.

E, no entanto, só nos resta viver.

Aprender sobre os gatilhos que detonam a sua ansiedade, abrir mão da ilusão de controle, não se cobrar tanto, esquecer um pouco dos outros, tentar se conhecer melhor, experimentar coisas e pessoas e lugares novos, manter o foco no presente, mudar de emprego ou de carreira ou de cidade ou de país ou de amigos sempre que isso lhe parecer a melhor solução, recusar relacionamentos abusivos ou mutuamente destrutivos (inclusive aqueles que você estabelece consigo mesmo).

Trabalho duro. Coisa que nenhuma substância fará por você.

 

Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Draft Canada. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.

Sobre o Autor

Jornalista e empreendedor, CEO & Founder da The Factory e Publisher do Projeto Draft. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico.