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Adriano Silva

Morar num lugar em que tudo funciona tem um preço. Você topa pagar?

Adriano Silva

26/11/2019 13h08

 

Em lugares em que os sistemas funcionam, você não precisa ser brilhante individualmente.

Basta você seguir o fluxo. Você só precisa compreender a marcha e seguir em frente. Há uma equação montada. Decore as fórmulas e continue andando. Se você fizer direito o seu trabalho, e se você tiver disciplina, o resto vem.

Se você não se colocar à frente de todos os demais, se você acreditar que vale mais a pena ceder um pouco de si para que as coisas funcionem para os outros também, e se você acredita que essa fórmula, no longo prazo, vai lhe trazer mais felicidade, mais paz e mais conforto, a correnteza que gera e que é gerada pelo movimento geral da manada lhe empurrará rio abaixo com segurança, e as coisas acontecerão para você.

Mesmo que não seja no seu tempo, nem exatamente do jeito que você imaginou, mesmo que você precise se adaptar um tanto, e que precise abrir mão de algumas ambições particulares, e que tenha de abandonar parte daquilo que você sempre sonhou para si.

Penso que o Canadá, país em que vivo há alguns meses, seja um lugar assim. As pessoas são um pouco conservadoras porque o que está posto funciona muito bem. E são um pouco acomodadas porque o conforto e a previsibilidade e a estabilidade lhes fizeram assim.

(Ou lhes permitem ser assim. A relativa lentidão dos movimentos, nesse caso, é uma conquista, é um direito, não se trata exatamente de um problema ou de uma desvantagem.)

Não espere velocidade e agressividade e brilho no olho e gana de vencer – não precisa. As coisas vão acontecer. De um jeito ou de outro.

Ninguém precisa tirar dez com estrelinha – porque com uma boa nota 8, bem distribuída por toda a sociedade, já se consegue construir um dos lugares do mundo mais legais para se viver.

Dobrar a energia, dar o sangue, engolir uma colher de sal para transformar o que já é muito bom em ótimo? Por que mesmo? Talvez o esforço para manter o padrão faça muito mais sentido do que o esforço para incrementar as benesses, que já estão aí.

Dá a impressão de que construir uma nação bacana depende muito menos de loucas cavalgadas individuais, e do surgimento de gênios entre nós, e muito mais do esforço coletivo de distribuir bem as oportunidades e as obrigações. Parece quase óbvio. Educar todo mundo, combater a desigualdade sem coibir as diferenças (e a diferenciação) entre os indivíduos, oferecer um colchão digno a quem não desempenhar tão bem e retirar o teto de cima das cabeças daqueles que se mostrarem fora da curva, pensar a sociedade para todos os cidadãos e não só para quem está no topo da pirâmide.

(Os Estados Unidos não são esse tipo de sociedade. De todo modo, a grande mensagem por trás do irônico e brilhante Forrest Gump, a meu ver, é como você pode construir a nação mais abastada no planeta só com idiotas se você fizer direito as coisas certas. Que são as mais básicas, as mais simples, as mais óbvias.)

 

Já em lugares em que os sistemas funcionam muito, você não pode ser brilhante individualmente.

Via isso no Japão, país em que morei por três anos, nos anos 90. Seu papel social está desenhado, seus espaços de atuação estão pré-determinados, e é muito difícil operar fora desse esquadro.

Você é parte de uma engrenagem e precisa funcionar como peça capaz de desempenhar com precisão milimétrica – ou, ao menos, precisa fingi-lo bem. (Você será perdoado se tentar dançar conforme a música e falhar, se demonstrar esforço e obediência, e não chegar lá, mas não será perdoado se nutrir alguma rebeldia, se dançar outra música, de sua própria escolha, ainda que brilhantemente.)

Em sociedades assim, você não pode deixar de fazer a sua parte – mas também não pode fazer a sua parte mais rápido, não pode fazer diferente, não pode fazer melhor, não pode fazer em dobro. Porque isso desorganiza o sistema tanto quanto se você simplesmente deixasse de entregar aquilo que se espera de você.

Há um ditado japonês que diz assim: o que você faz com aquele prego que fica acima e afora da manada? Você martela sua cabeça até que ele fique perfeitamente nivelado – por baixo – pelos outros.

Sempre me pareceu que o preço individual que se paga pelo bem-estar coletivo, numa sociedade como a japonesa, era alto demais. O tanto de neurose, de autorrepressão, de infelicidade particular, de recalques, de supressão do autoconhecimento e de negação de si mesmo, não faria sentido.

 

Já em lugares em que os sistemas não funcionam, como no Brasil, você precisa dar o seu jeito, inventar um modo, encontrar um atalho – ou seja, em alguma medida, você precisa brilhar individualmente.

Porque tudo depende de você. Não há processo. Só há o caos à volta. Não há rede de segurança. Ou você cria asas, e descobre um jeito de voar, ainda que não seja o mais eficaz nem o mais correto, ou vai se esborrachar no chão.

Então a gente aprende a improvisar. Trocamos a disciplina pela capacidade de adaptação. Ser criativo e flexível vira uma questão de sobrevivência. Como efeito colateral, com frequência a falta de método conduz à falta de limites. Como estamos sempre recriando os parâmetros, e desconfiamos das placas de sinalização que encontramos pelo caminho, relativizamos tudo. Daí para o vale-tudo é um passo.

Quando cada um faz sua própria lei, não há lei. E onde não há lei, é faroeste. É cachorro comendo cachorro. Ou você mata ou você morre. Quem pode mais, chora menos. Etc.

Assim, muitas vezes inebriados com nossa inventividade e com nossa capacidade de realização à margem dos sistemas, ultrapassamos a fronteira da ética, da honestidade, da decência, do que é certo e do que é errado, do que é admissível e do que é espúrio.

Como ninguém legisla visando o bem de todos, tratamos de legislar em causa própria. Como não há entre nós a preocupação com a justiça e o equilíbrio, nossa prioridade é não sobrar no bolsão dos injustiçados, é não sobrar de vítima das circunstâncias.

Como não confiamos em ninguém, nossa missão é resolver o nosso lado. Aos demais, no máximo, desejamos que consigam fazer o mesmo por eles próprios. Mas se houver algum conflito entre eles e nós, escolheremos sumariamente por nós mesmos, sem qualquer apetite para negociação e sem qualquer pejo de usar quaisquer recursos necessários para que o bife esteja no nosso prato. E azar dos outros.

(Eis por que somos um dos povos mais egoístas do planeta.)

 

No âmbito brasileiro, a ideia contida no famoso verso "Deixa a vida me levar/Vida leva eu" funciona muitas vezes como um escape desesperado, de quem joga para cima o que não consegue mais administrar, de quem desiste do método e do planejamento e passa a acreditar que será salvo pelo acaso ou por alguma providência divina.

A síntese de Zeca Pagodinho, nessa perspectiva, soa como um bálsamo de auto-ajuda para sobreviver à barbárie do dia a dia, como uma tábua de salvação psíquica para resistir ao absurdo do cotidiano.

No âmbito canadense, ou mesmo japonês, a mesma ideia soa diferente: trabalhe e confie, faça a sua parte, siga caminhando que tudo vai dar certo, de um jeito ou de outro. Não é uma desistência do sistema, em nome de uma solução mágica, mas, ao contrário, a própria confiança no sistema, em uma solução que advém do processo.

Não tem nada a ver com entregar a deus ou se entregar ao improviso. Deus não tem nada a ver com isso. E seguir as regras é exatamente o oposto do improviso.

Hoje penso que a ausência de sistemas, no rincão kafkiano em que nasci, no "mais estranho dos países", parafraseando Paulo Mendes Campos, também não nos salva da neurose, da autorrepressão, da infelicidade particular, dos recalques fundos, da supressão do autoconhecimento e da negação de si mesmo.

Parece que a civilização brasileira realiza um duplo prejuízo: além das feridas sociais, e da nossa tremenda desorganização coletiva, e das enormes ineficiências que não conseguimos superar como sociedade, ainda sofremos, do nosso modo específico, de todas aquelas mazelas individuais.

A eficiência tem preço. Quanto você está disposto a pagar por isso?

Viver sem sistemas, cada um cuidando apenas de si, resolvendo só o seu, tem um preço ainda maior. Até quando você está disposto a pagar por isso?

 

Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Founder da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Draft Canada. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.

Sobre o Autor

Jornalista e empreendedor, CEO & Founder da The Factory e Publisher do Projeto Draft. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico.