O que os mendigos de países ricos revelam sobre a miséria humana
É o seguinte. Há acumulação e há exclusão em virtualmente todas as sociedades. Em todo lugar tem gente com mais do que precisa – e querendo ainda mais. E gente que descarrila, que fica para trás, que vive abaixo do mínimo de dignidade requerido por um ser humano.
Há países mais equilibrados, que pensam sua sociedade como um lugar para todos, como a Dinamarca ou a Suíça. E gozam da qualidade de vida e dos índices de segurança e de felicidade correspondentes à sua taxa de igualdade social.
E há países muito desequilibrados, que pensam sua sociedade como um lugar para poucos, em detrimento de todos os demais, como o Brasil ou a África do Sul. E sofrem do caos, da violência e da insegurança correspondentes ao seu nível de desigualdade social.
Eis o ponto: mesmo em sociedades mais igualitárias, há distâncias entre ricos e pobres. O conforto e a maciez da riqueza, de um lado, e a dura e gélida face da miséria humana, de outro, estão presentes em quase todo lugar.
A civilização, vista assim, parece ser uma utopia de difícil construção. E a barbárie, seu oposto, parece ser uma distopia de fácil acesso, à nossa espreita em qualquer esquina de qualquer cidade do mundo.
Em Toronto, uma das cidades mais ricas do Canadá, um dos países mais ricos do mundo, uma sociedade bastante diversa e inclusiva, com um padrão de classe média disseminado pela população, há párias. Um tanto de gente doida, noiada, suja, ferida, vagando pelas calçadas do belo downtown da cidade, pertinho do lago Ontário.
O contraste entre os abastados e os despossuídos num país estruturalmente injusto como o Brasil é hediondo e vergonhoso. Encontrar gente emborcada na vida num país tão homogêneo quanto o Canadá não é menos chocante.
Há fatores coletivos e fatores individuais que determinam a existência de esfarrapados entre nós, por mais desenvolvidos e eficientes que sejamos. No Canadá e no Japão, um morador de rua pode usar o mesmo sistema de saúde que atende o resto da população. Em Toronto, os mendigos sobem e descem sem pagar do sistema público de transporte, que serve toda a população, e são de modo geral bem tolerados por todos.
(O que me faz pensar que um homeless canadense tem acesso a melhores serviços do que um cidadão brasileiro de classe média baixa.)
Por outro lado, por mais oportunidades que haja, por mais redes de segurança e incentivos que estejam disponíveis, sempre haverá gente que se recusa, ou que simplesmente não consegue, andar pelas estradas colocadas à sua frente. Gente que vai, por vontade própria ou por impossibilidade de fazer diferente, acabar caminhando descalça sobre os pedregulhos do acostamento.
A miséria humana é uma realidade com a qual parece que teremos sempre de lidar. Dentro de nós, em nossa família, entre nossos amigos, em nosso bairro, em nossa cidade, em nosso país, em qualquer lugar.
Um dos jeitos de enxergar a trajetória humana é como uma longa caminhada do caos e da selvageria em direção à convivência pacífica e organizada (com frequentes e dolorosos retrocessos). Um dos principais fios condutores desse movimento parece ser a nossa fuga eterna e constante da miséria, da doença, da pobreza, da loucura, da solidão – tanto no plano individual quanto no plano coletivo.
Essa parece ser uma boa definição da nossa jornada sobre a Terra, tanto como espécimens incumbidos de carregar genes de uma geração a outra, perpetuando a espécie, quanto como comunidades de indivíduos que se reúnem para gerar algum bem comum.
Eis o nosso paradoxo: nos reunimos porque há mais benefícios na proximidade com os outros do que no isolamento – sozinhos não conseguiríamos; apartados já teríamos morrido (ou nos matado) todos. E, no entanto, há entre nós, logo ali na esquina, na sarjeta, à frente de nossos carros, criaturas que vivem no abandono, segregadas a um deserto pessoal intransponível e hostil.
O fato de que talvez jamais venhamos a erradicar totalmente a escassez, para alguns de nós, por mais abundância que consigamos gerar, parece representar uma equação humana universal, que independe de país, cultura e etnia. Resolver esse problema talvez seja uma quimera – da qual não podemos desistir.
Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Founder da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Draft Canada. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.
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