Bem-vindo à era da LGBTexploitation
De repente, todo mundo está empunhando bandeirinhas com as cores do arco-íris.
A gente liga a TV e todas as marcas parecem ter tirado do bolso da casaca uma consciência histórica e inabalável sobre a importância da diversidade e da celebração das diferenças, tanto no mundo quanto dentro de seus próprios escritórios.
Parece que todos os diretores de marketing do país convivem bem com seus filhos e filhas gays. Que os namorados de seus filhos e as namoradas de suas filhas são apresentados normalmente em público e são bem-vindos para dormirem juntos com seus rebentos, em casa, com as portas fechadas.
Parece que em todos os conselhos de administração das grandes empresas brasileiras os LGBTs (para lembrar: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros) estão bem representados, ao lado das mulheres e dos negros.
(Eu não me surpreenderia se na semana que vem até a Havan ou a Riachuelo entrasse nessa onda. Ou, sei lá, os supermercados Hirota, em São Paulo, divulgassem uma cartilha afirmando que não pode haver nada mais cristão do que celebrar o amor, inclusive aquele que floresce nas relações homoafetivas, e que é coisa do diabo demonizar qualquer tipo de casamento entre dois seres humanos que desejam apenas ser felizes na paz do Senhor.)
Em inglês, há um termo para essa apropriação mercadológica – exploitation. É quando você explora um conceito, uma ideia, uma imagem, uma novidade, uma corrente de pensamento, mesmo não concordando com ela.
Esse é o grande segredo do capitalismo, e uma das ferramentas mais brilhantes do marketing: a absorção rápida do que está rolando, de modo a tirar o suco da tendência, para em seguida jogá-la fora e surfar a próxima onda, sem desapego – e sem apego também.
Uma espécie de agnosticismo de mercado, em que tudo vira uma chamada, um trocadilho, em que tudo se resolve com um slogan bem sacado e com uma assinatura de marca bonita, em que os conflitos são rapidamente solucionados em filmes edulcorados de 30 segundos, e em que o único credo é levar vantagem – tudo que não for resultado não vem ao caso e é conversa bizantina, para acadêmicos e não para mulheres e homens de negócio.
Discutir de verdade não é bom para os negócios. Não gera vendas. É um risco para a imagem. Não tem a ver com o core business da companhia. Estamos no ramo de encerrar rapidamente as questões, para que não haja respingos em nossa reputação ou em nosso fluxo de caixa, e não de abri-las, encará-las, mergulhar nelas à vera.
No caso dos LGBTs, já há expressões como queerbating e pinkwashing que surgem como um anteparo a essa cooptação – com frequência insincera e vazia – da causa pelo sistema.
Mas peraí. Então esse ufanismo todo em relação à causa LGBT, que é grandemente falso na medida em que na maioria das vezes não se reflete no dia a dia das empresas que o estão trombeteando, é ruim?
Muita gente diria que sim. Eu discordo. Acho a exploitation uma boa notícia. (Ou pelo menos não acho que ela seja uma má notícia.) Algumas revoluções surgem no mundo real, e depois viram narrativa. Mas há outras que se consolidam como narrativa, muito antes de se tornarem 100% verdadeiras no mundo real. E tudo bem. Porque ganhar o jogo no campo do storytelling, da cultura, da superestrutura, pode significar um atalho e um acelerador ótimo para que as coisas mudem de fato na concretude do dia a dia.
Então, a meu ver, o oportunismo de alguns discursos é, sob esse ponto de vista, absolutamente bem-vindo. Ele pode contribuir de verdade, mesmo não sendo exatamente verdadeiro.
Às vezes é preciso ouvir, como uma preparação para ver. E começar a ver, para então aceitar. Às vezes é preciso exposição, para sair do subterrâneo e deixar de ser marginal. E virar fala, virar discurso, para perder a vergonha de se mostrar e também para deixar de chocar os incautos. Esse é um dos caminhos possíveis para a normalização do que antes era visto como coisa grotesca ou inaceitável.
Lembro de mim mesmo, por exemplo, na virada dos anos 80 para os 90. A primeira que vi dois meninos se beijarem. Um beijo de língua, com a boca aberta, como dois namorados. Vão aí quase 30 anos. Vivíamos outros tempos. Era um outro mundo e era um outro Brasil. Em que um sujeito como eu chegava aos 20 e poucos anos sem jamais ter visto a expressão pública de uma relação homossexual.
Os garotos, membros de uma trupe de teatro, se beijaram em público, com um tanto de intenção de quebrar a porta do armário que os aprisionava. Nem que fosse por alguns segundos. Era um amasso destinado, portanto, a ser também um manifesto.
Uma pena para eles – seria melhor, creio, que vivessem num lugar e num tempo em que o seu beijo pudesse ser apenas um beijo, uma expressão corriqueira de carinho ou de paixão. Sem a necessidade de ser também um gesto político.
Um privilégio para mim, que fui apresentado àquela cena rara, inédita para mim. A intenção deles se realizou – eu me senti um pouco agredido. Uma ruptura importante para começar a perceber, em seguida, que não havia qualquer razão para o espanto.
Se eu tivesse visto antes na televisão, mesmo que num exploitation da causa LGBT (termo que nem se conhecia à época), talvez tivesse sido mais fácil, ou tivesse acontecido antes, perceber que se tratava apenas de um beijo entre duas pessoas que tinham o completo e inalienável direito de beijar quem quer que desejassem.
Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Founder da The Factory e Publisher do Projeto Draft. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.
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