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Adriano Silva

Afinal, o que significa ser de "esquerda"?

Adriano Silva

08/05/2019 16h13

"Esquerda" virou um palavrão no Brasil. Chamar alguém de "comunista" virou um xingamento. "Marxista" é o pior dos apupos. Mas alguém sabe realmente o que está falando – ou o que está ouvindo quando morre de medo ou de raiva diante de um termo como "socialismo"? Palavras têm poder. É preciso entender o que elas representam, em todas as nuanças possíveis, de modo a utilizá-las – e compreendê-las – corretamente.

Este é o convite que faço a você hoje: afinal, o que significa ser de "esquerda"?

Esquerda costumava significar comunismo ou socialismo. Se você não era a favor do capitalismo, você era de esquerda.

Se você achava que o dinheiro não era o santo gral da humanidade, nem um semideus a ser adorado, nem que merecia ser a medida de todas as coisas ou a referência para regular as relações em sociedade, você era de esquerda.

Dinheiro é riqueza circulante. Um mecanismo que regula as trocas de bens e serviços entre os indivíduos. Que conduz à competição entre eles pela conquista e estoque desse poder de compra. E que resulta em desigualdade social – uns ficam com muito mais do que precisam (e passam a não ter mais que trabalhar para ganhar dinheiro), outros ficam com muito menos do que necessitam – mesmo investindo no trabalho todo o seu tempo de vida. Então, se você era contra a ascendência do capital sobre o ser humano, e contra as desigualdades que provêm do acúmulo de poder aquisitivo, você era de esquerda.

Ser de esquerda era buscar uma sociedade igualitária, sem privilégios de uns sobre outros, com condições mínimas de dignidade econômica garantidas a todos, sem o fosso social entre os muito ricos e os miseráveis que define tão bem, e racha tanto, um país como o Brasil.

A esquerda apostava na geração de bem-estar mais pela via da política do que pela via da economia. O bem-estar viria muito mais do senso de justiça em dividir o pão existente do que dos ganhos de produtividade de produzir mais pães a preços menores.

Se você achava que o dinheiro não era o santo gral da humanidade, nem um semideus a ser adorado, nem que merecia ser a medida de todas as coisas ou a referência para regular as relações em sociedade, você era de esquerda.

O termo "esquerda" surgiu na Revolução Francesa, no final do século 18. Os Jacobinos, liderados por Robespierre, que sentavam à esquerda na Assembleia Nacional Francesa, e que eram mais radicais na implantação do novo regime, se opunham aos integrantes do Clero e da Aristocracia, que sentavam à direita e representavam os interesses remanescentes do Ancien Régime.

De modo geral foi assim, no mundo todo, ao longo de muitos anos – ser favorável aos interesses dos poderosos, da chamada classe dominante, dos detentores do capital e dos meios de produção, era ser de direita; ser favorável aos interesses dos destituídos, dos descamisados, dos que nada tinham além da sua força de trabalho, era ser de esquerda.

Ascetismo moral e visão ingênua do ser humano

Aqui no Brasil, havia também, na esquerda, uma bandeira de honestidade inquestionável, de correção inflexível, de ética inegociável, quase como um ascetismo moral, uma profissão de fé – afinal, se você era contra a opressão do homem pelo homem – e essa era uma posição de esquerda – era óbvio que você tinha o coração puro.

Assim como era óbvio que quem estivesse do outro lado do espectro político, numa posição de direita, defendendo os privilégios estabelecidos para uns, e, por conseguinte, as injustiças impostas a outros, não tinha essa retidão, nem essa bondade, e nem podia ser boa gente.

A crença era que os trabalhadores, explorados, quando tomassem o poder, não se pareceriam em nada com os verdugos exploradores do sistema capitalista. Afinal, atuar de modo espúrio era a "práxis" das elites que governavam o país, e o mundo, há séculos. A exploração dos mais frágeis pelos mais poderosos era coisa de ricos – então esse não era um pecado no qual os pobres, bons selvagens, o povo escolhido, fossem incorrer. O poder, na mão da esquerda, jamais corromperia essa mão, que tinha o destino manifesto de ser redentora e de se manter imaculada.

O projeto da esquerda, que visava a extinção do capitalismo e das injustiças que dele decorrem, promoveria também, automaticamente, a sanitização das más intenções e das ações torpes em todos os homens. Ex-escravos jamais se tornariam os novos feitores – desde que sua liberdade fosse conquistada de forma autônoma e não concedida por um senhor feudal, em troca da sua alma. Seríamos todos incorruptíveis. Estaríamos livres da ganância e da insensibilidade burguesas.

Num primeiro momento, todos seríamos recompensados proporcionalmente por aquilo que produzíssemos para a coletividade – o socialismo. Num segundo momento, cada um produziria de acordo com a sua capacidade e ganharia de acordo com a sua necessidade – o comunismo. Uma linda utopia de justiça e solidariedade. A espécie humana como uma grande fraternidade – tanto na base da sociedade, quanto entre os novos líderes, legítimos representantes do povo. (Essa representação, no novo sistema, não correria jamais o risco de começar considerando todos iguais e descambar logo em seguida para que uns se tornassem mais iguais do que outros, com acesso a privilégios exclusivos, e se eternizassem no poder…)

Então é possível que a utopia de esquerda embuta uma visão ingênua, ou excessivamente otimista, do ser humano. Boa parte do malfuncionamento das engrenagens de esquerda, como se viu nas várias experiências do chamado "socialismo real", talvez se deva ao fato de que elas contavam com uma peça central que jamais existiu nesse quebra-cabeça – um ser humano justo, fraterno, solidário e consciencioso.

O projeto coletivista de esquerda e o egoísmo intrínseco dos brasileiros

No caso brasileiro, a proposta de esquerda esbarra num paradoxo adicional: como construir um projeto coletivista numa sociedade que ignora o conceito de coletividade? O individualismo à brasileira é do tipo que não dá a mínima para o outro. É um traço formativo da nossa sociedade: eu jogo lixo na rua porque isso resolve o meu problema – e os outros que se lixem. Idem para estacionar em fila dupla, furar a fila, andar pelo acostamento, bloquear a passagem num corredor ou numa escada rolante etc. Somos, a rigor, 200 milhões de folgados que têm certeza de que seu tempo, seus interesses, suas prioridades, seus desejos, suas urgências e suas demandas são mais importantes do que os do vizinho. As nossas dores são as únicas que importam.

O egoísmo do brasileiro nos leva a não conseguir negociar com o próximo um território mínimo de convivência, nem, muito menos, de interesses em comum, o que não nos permite construir nada conjuntamente. Trata-se de uma postura (auto)destrutiva, porque nos coloca num permanente estado de guerra entre iguais.

Por isso a vida social no Brasil é um ambiente de grande tensão – quem não leva vantagem é subtraído, se você não for malandro, vira otário. Nem mesmo a Lei, a zona neutra, as regras básicas que todos deveriam seguir, e que servem para regular a beligerância entre os indivíduos num país movido à competição, como os Estados Unidos, é respeitada no Brasil. Aqui a Lei vale de modo diferente para uns e para outros, dependendo do poder da pessoa envolvida diante dos demais.

No limite, o individualismo delinquente praticado no Brasil é um empecilho à própria utopia liberal. Com essa cepa de egoísmo, é impossível gerar o bem-comum – seja num modelo de esquerda, seja numa engrenagem capitalista desenhada para levar isso em consideração.

Heróis são de esquerda, vilões são de direita

A conotação da esquerda sempre foi a do herói, do mártir, do cara que briga por justiça e por um mundo melhor. Eis o arquétipo de esquerda – Robin Hood, que tira dos ricos para dar aos pobres. Já a conotação da direita sempre foi a do vilão, do cara que briga para manter no mundo as injustiças que lhe favorecem. Eis o arquétipo da direita – Príncipe John, o usurpador.

(Note-se, entretanto, que Príncipe John era um feroz arrecadador de impostos, que retirava os cobres das algibeiras das pessoas comuns para abarrotar seu erário, servindo-se da violência do Xerife de Nottingham para isso. E note-se que Robin Hood se insurgiu contra essa ganância e essa coerção, que nada retornavam aos cidadãos que trabalhavam para gerar as riquezas de que pouco gozavam, porque tinham que sustentar o trono. Ou seja, também é possível ver Príncipe John como o Estado que custa bilhões à sociedade e como o governo perdulário – que, com frequência, como aqui no Brasil, é ineficiente, além de corrupto. Assim como é possível ver Robin Hood como um liberal, talvez um anarcocapitalista, que se insurge contra isso – inclusive contra o braço policial do Estado, representado pelo Xerife – e que sonha com que a riqueza gerada pelas pessoas possa permanecer em seus bolsos, ao invés de ser achacada por um poder central que existe, acima de tudo, para sustentar a si mesmo.)

Ao longo do século 20, ser de esquerda era também ser um pouco maldito, consequência de confrontar os poderosos – uma contrapropaganda da qual, aliás, Robin Hood também se ressentia. Um dos efeitos da Ditadura Militar no Brasil é que, ao longo de duas décadas, ser de esquerda também passou a representar a coragem de resistir. Diante do tacão da direita totalitarista, era quase óbvio, por oposição simples, para qualquer pessoa decente, ou minimamente pensante, ser um pouco de esquerda. (Era fácil posicionar-se à esquerda.) Debaixo dos coturnos, ser contra o regime dos generais, contra a tortura, ser democrata, defender a liberdade para o povo e os direitos dos trabalhadores era quase uma questão de caráter – e tudo isso implicava se posicionar à esquerda. A Ditadura, apoiada pelos Estados Unidos, fez muito mal para a reputação do capitalismo no Brasil.

A truculência dos militares gerou vítimas e mártires do outro lado. E, em consequência disso, um senso de heroísmo atrelado à esquerda. Essa visão da esquerda como o espírito encarnado de Zorro foi crescendo no Brasil até ela assumir o poder central do país, em 2002. Aí, pela primeira vez em nível federal, a esquerda virou situação por aqui. O auge do orgulho abriu espaço para grandes expectativas, envoltas numa sensação de sonho virando realidade.

E, a partir daí, aquela imagem começou a mudar. Não se tratava mais do agente subterrâneo, disposto a pegar em armas contra a tirania dos poderosos. Nem do velho comunista boêmio e boa-praça. Nem do intelectual marxista, estudioso das teorias filosóficas que sustentam o pensamento de esquerda. Nem do herói popular aguerrido, oriundo da massa oprimida. A esquerda, no país, deixou de ser avaliada pelo que diz, e passou a ser cobrada pelo que faz.

Como resultado, a esquerda entrou na berlinda. Perdeu seu maior ativo – o seu discurso histórico. Como um pregador que não pudesse mais lançar mão de seu evangelho. A crise ética deflagrada no seio da esquerda, epitomizada pelo impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, e pela prisão de Lula, em 2018, não apenas expôs os atos da esquerda no poder, invertendo o sentimento de grande parte das pessoas em relação àquelas promessas, como gerou uma reação conservadora de grandes proporções – pela primeira vez, em mais de meio século, desde o Golpe Militar, se tornou possível no Brasil alguém se assumir de direita, e até de ultradireita, à luz do dia, sem ser considerado apenas um lunático ou um facínora.

De todo modo, é por conta daqueles arquétipos clássicos que o malfeito nos soa menos ofensivo num cara de direita – em relação ao qual jamais nutrimos grandes expectativas – do que num cara de esquerda – que trai a fala puritana no qual depositamos nossa Fé. Nos agride muito mais sermos avassalados por alguém que acreditávamos ser um anjo do que por alguém que já sabíamos ser um demônio.

Sermos enganados por enganadores históricos e profissionais, que já estavam de algum modo contabilizados na coluna das perdas e danos, tudo bem. Do ladrão confesso, do bandido óbvio, do meliante autoevidente, não esperamos nada. Ou melhor: já esperamos dele o pior. (E às vezes até nos surpreendemos positivamente, quando ele deixa uma fatia de pão sobre a mesa, depois de afanar o café da manhã.)

Mas quando quem se revela bandido tinha a nossa confiança, embalava o nosso sonho e empunhava a nossa bandeira, nos sentimos profundamente ofendidos. Sermos enganados por quem nos enganava justamente fingindo não ser um enganador, ah, isso não. Aí é pessoal. É acinte. Nosso monge simplesmente não tem o direito de fazer igual ou pior do que os bandoleiros que ele excomungava em seu discurso beatífico.

 

Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Founder da The Factory e Publisher do Projeto Draft. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.

Este texto foi extraído (e levemente adaptado) do capítulo "Sobre Direita e Esquerda", do livro A República dos Editores, do autor, publicado pela Rocco em 2018.

Sobre o Autor

Jornalista e empreendedor, CEO & Founder da The Factory e Publisher do Projeto Draft. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico.