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Adriano Silva

Aprenda a xingar do jeito certo

Adriano Silva

25/04/2019 16h57

 

Nenhuma palavra exprime o sentimento de revolta diante de uma situação ultrajante melhor do que um palavrão. Em qualquer língua – trata-se de um utensílio universal. É para isso que os xingamentos existem: para comunicar, em letras capitais, de modo inequívoco, a nossa indignação diante de uma injúria, de uma injustiça, de um absurdo.

O palavrão, na melhor das hipóteses, é uma forma de devolver a agressão sofrida. Em tempo real. De passar uma risca no chão, com a ponta da faca, e dizer a quem nos ofende que ofensas não serão toleradas – ou que sabemos ofender de volta.

Em sua pior acepção, os xingamentos são bullying deliberado – tapas na cara que surgem como um convite explícito para a briga.

Diante de uma situação que desperta a raiva, você tem duas opções. Uma é não deixar o próprio sangue ferver. Exercitar a compaixão diante do agressor, a compreensão – ou a superioridade – diante da desinteligência alheia, ao invés do ódio.

A outra é reagir. E aí o xingamento vem. Mesmo que você só pense no palavrão, e não o pronuncie, ele emerge pronto, bruto, afiado, dos seus subterrâneos. É o que acontece com a imensa maioria das pessoas, que ainda não consegue agir como Jesus e Buda preconizaram.

Então é preciso saber xingar. O que não é uma questão simples se você cultivar uma ética pessoal contrária à discriminação de gênero ou aos preconceitos de cunho sexual. Eis o ponto: dá para xingar de modo justo, sem se tornar pior que o seu adversário? Dá para expressar a sua contrariedade com veemência, sem abrir mão da sua visão de mundo, das suas escolhas e dos seus valores?

Eis o problema com os palavrões: encontrar aqueles que lhe representam, antes de sair por aí bradando barbaridades que fazem mais mal a você do que ao seu opositor.

Senão, vejamos.

Filho da puta. Prostituição, quando é uma escolha do indivíduo, quando não há coação ou exploração, é uma profissão como qualquer outra. Uma troca soberana entre um prestador de serviços e um comprador daqueles serviços e, portanto, uma atividade econômica que precisa ser respeitada. Não há, como se vê, demérito algum em ser filho de uma puta. Como não há, a princípio, em ser filho de um advogado ou de um deputado.

Puto(a), quenga. Ver acima.

Piranha. Aqui o foco muda – trata-se de um preconceito contra mulheres que têm uma vida sexual ativa. É como se fosse um demérito para as mulheres praticar sexo regularmente. E como se elas devessem se submeter passivamente a um só homem, ao invés de escolher soberanamente quantos e quais homens desejam levar para a cama.

Periguete, vadia, vagabunda, vagaba, maria-gasolina. Ver acima.

Veado. Trata-se de considerar a homossexualidade um fator de vergonha ou de diminuição da honra do indivíduo. Uma conversa tão arcaica quanto, sei lá, o terraplanismo. Os gregos, cinco séculos antes de Cristo, já sabiam que a Terra era redonda e que não havia problema algum em amar pessoas do mesmo sexo.

Gay, sapatão, sapata, velcro, pederasta. Ver acima.

Bicha. Trata-se de um sujeito com trejeitos efeminados. Portanto, esse termo embute uma visão duplamente ofensiva – além de desdizer dos homens que assumem gestos pretensamente femininos, desdiz da própria feminilidade desses gestos, características supostamente oriundas do universo feminino. Como se qualquer coisa que remetesse ao mundo das mulheres, especialmente em homens, fosse uma desonra.

Fresco, frutinha, boneca, maricas, pera, perobo, boiola, baitola, gazela, biba, mona, bambi, traveco(a). Ver acima.

Vai tomar no cu. Um enorme juízo de valor torto em relação ao sexo anal. Em especial, no que ser refere a quem está sendo penetrado. Outra vez, as características de "fêmea" são vistas como as piores possíveis, em especial se elas forem assumidas por um "macho". O sexo anal é um dos grandes tabus nacionais – a ode brasileira à bunda não é outra coisa que não a nossa dificuldade em lidar com ela. Há ainda entre nós a ideia de que um homossexual em posição ativa não é homossexual – ou é um homossexual em situação menos vexatória do que a de quem está em posição passiva.

Vá se foder, se fodeu, vai dar meia hora de cu, pau no cu, sodomita, fronha, queima-rosca, morde-fronha, entubar. Ver acima.

Bundão. Outra referência ao traseiro, agora sem a conotação sexual, mas com grande preconceito em relação a essa área do corpo. Como se a função excretora retirasse da região qualquer charme ou dignidade. Como se a área fosse sinônimo de coisas desinteressantes e caídas. Uma visão higienista – e bastante sem graça – do corpo e da vida.

Cuzão, cu, bunda. Ver acima.

Chupa! A ideia aqui é que fazer sexo oral, de modo ativo, é uma humilhação, uma posição servil; enquanto receber sexo oral, de modo passivo, ser servido na própria genitália pela boca de outrem, é uma posição superior, uma afirmação de poder. Essa ideia nasce no universo masculino, com o falo no centro das ações. As mulheres recentemente têm brincado com o tema, trocando de posição com os homens, mas sem, necessariamente, quebrar com o preconceito que há na visão de que só quem é chupado se diverte, às custas do calvário de quem chupa. (Essa é uma ideia francamente absurda. Ou ingênua. De gente com pouca experiência e paladar infantil.)

Chupa-rola, chupador(a), chupa-vara, chupa-pica, boqueteiro(a). Ver acima.

Caralho(a), porra, pica, saco, escroto, na cabeça do meu pau. Os xingamentos, de modo geral, são machistas. São memes que cristalizam, há muito tempo, uma visão falocêntrica do mundo. Curiosamente, a genitália masculina é muito mais usada com polaridade negativa do que a feminina. Talvez para fazer um ponto: homem que é homem (heterossexuais cisgênero) não gosta de homem, gosta mesmo é de mulher – ainda que de modo muitas vezes depreciativo. Curiosamente, é essa visão que ainda hoje pauta a nossa vida – até mesmo no nível da linguagem e no modo como xingamos.

Gorda. O que seria apenas uma constatação (talvez algo intrusiva e deselegante), o termo se torna – em especial na voz de mulheres mirando em outras mulheres – no mais ferino dos xingamentos. Trata-se de atacar o outro com o que sentimos ser a nossa maior fragilidade, com a ideia que mais nos aterroriza. Ao tocar no que imaginamos ser o ponto nevrálgico do outro, de modo direto, sem metáforas e sem espírito jocoso, essa categoria de xingamentos figura como uma das mais cruéis e covardes. As referências são normalmente às características físicas ou funcionais do outro que nós consideramos desabonadoras. Um festival de preconceito, ignorância e insensibilidade. Boa parte dessas expressões de ódio já constitui crime.

Broxa, velho(a), dona-maria, preto(a), negrada, amarelo(a), pobre, favelado(a), nordestino(a), paraíba, baiano, manco(a), desdentada(o), toco, pau de virar tripa, cachaceiro(a). Ver acima.

Cadela, vaca. Analogias animais usadas especialmente por mulheres para mencionar outras mulheres. "Cadela" está muito próximo de "puta" ou "piranha". "Vaca" é uma mistura de "gorda", "égua" e "burra". O que é uma injustiça com as cachorras, que só fazem sexo quando querem, sem jamais receber dinheiro por isso, e com as vacas, seres pacíficos que há séculos doam tudo que têm aos seres humanos sem pedir em troca nada além de água e capim.

Cavalo, égua, burro(a), porco(a). Enquanto "cavalo" e "égua" referem uma pessoa grossa, rude, estúpida, "burro" é uma referência à falta de inteligência e "porco" à falta de higiene do indivíduo. O que é, de novo, uma injustiça com os animais – usamos seus nomes em vão para exprimir em seres humanos características que não são definidoras daqueles animais.

Merda. Finalmente chegamos a um xingamento que parece não comprometer quem o enuncia. Merda é excremento, um rejeito que cheira mal, algo indesejável.

É isso. Xingar é uma bosta. Mas ninguém está livre de precisar lançar mão desse artifício. Espero que esse arrazoado contribua para que você, na eventualidade de ter que abrir a boca para xingar, não fale merda.

 

Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Founder da The Factory e Publisher do Projeto Draft. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.

Sobre o Autor

Jornalista e empreendedor, CEO & Founder da The Factory e Publisher do Projeto Draft. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico.