100 dias toscos, áridos e à deriva
Entre 18 de setembro e 26 de outubro de 2018, publiquei 17 artigos tentando compreender o voto em Bolsonaro e, ao mesmo tempo, me opondo à escolha política e ao projeto de país que ele representava.
Bolsonaro foi guindado à Presidência da República pelo voto de nada menos que 55,7 milhões de brasileiros, desde o chamado baixo clero da Câmara dos Deputados, em Brasília, um entreposto marcado pelo fisiologismo e pela troca de favores, onde ele militou por longos 27 anos, de 1991 a 2018, dizendo que usava o dinheiro do auxílio-moradia "para comer gente" e que só não estuprava uma adversária política porque ela não merecia, entre outras barbaridades.
Bolsonaro não foi eleito apesar dos absurdos que sempre pronunciou. Ele foi eleito por causa dos absurdos que disse. O codinome "mito" vem daí: Bolsonaro expressava de peito aberto as visões mais preconceituosas, discriminatórias e incivilizadas que milhões de brasileiros cultuam em silêncio, sem coragem de dizê-lo em voz alta, na frente dos filhos.
Bolsonaro não só bradava as ofensas à luz do dia, como criou três filhos tão brutos quanto que ele. Um prodígio. Transformou-se em herói da tradicional família patriarcal brasileira.
Nós premiamos a tosquice de Bolsonaro com 46,03% e 55,13% dos votos válidos, respectivamente, nos dois turnos da eleição. Ou seja: autorizamos Bolsonaro a seguir sendo tosco. Em retribuição, um presidente dessa cepa nos autoriza também a resolver as questões na base do raciocínio tatibitate, da injúria e da porrada.
Bolsonaro é um fenômeno que atropelou a intelligentsia nacional – em mais de um sentido. Gestado e fermentado no Brasil profundo, a partir de listas e grupos de celulares, operando de forma autônoma, à revelia dos meios de comunicação tradicionais, distorcendo os fatos e demonizando a imprensa profissional, Bolsonaro cresceu a partir do desejo dos brasileiros – em especial dos pouco instruídos, dos desesperançados, dos vencidos pelo medo e pelo ódio, daqueles com o pensamento construído no fundamentalismo religioso – de apostar numa promessa de uso da truculência para corrigir o que julgavam estar errado no país.
O governo Bolsonaro está completando seus primeiros 100 dias. Nesse período, sua aprovação caiu 15% em relação às expectativas que havia a seu respeito em 1º de janeiro 2019. Com 34% de avaliação positiva no final de março, pode-se dizer também que Bolsonaro perdeu 21% da confiança que obteve das urnas em 28 de outubro do ano passado.
Não vou aqui reeditar os pontos que elenquei naquela longa série de artigos que escrevi antes da eleição. É tarde para isso. Elegemos esse presidente, e todos os valores que ele traz consigo, democraticamente. Mas continuo tentando entender o que está acontecendo.
Bolsonaro começou a disputa pela presidência, no início de 2018, com 20% das intenções de voto. Ou seja: ele emergiu das estranhas do país com algo em torno de 20 milhões de votos. Esses são os bolsonaristas de primeira hora, que vou chamar de fundamentalistas, gente ligada às forças mais conservadoras do país, das igrejas aos quarteis, passando pelos latifúndios, por ambientes familiares repressores, por parte do empresariado.
Grosso modo, outros 26 milhões de brasileiros se juntaram a Bolsonaro até o voto no primeiro turno, em 7 de outubro. Esses são os bolsonaristas de segunda hora, que vou chamar de pragmáticos. Gente que desejava mudança, que desenvolveu ojeriza às administrações do PT em específico, e ao discurso de esquerda em geral. Uma turma que não é necessariamente a favor do totalitarismo, mas que também não rechaçou esse discurso.
(Toda essa gente poderia ter simplesmente votado – e eleito –, por exemplo, João Amoedo, do Partido Novo, um candidato que também trazia um discurso antiesquerda, pró-capitalismo e de ética na política – e que ainda oferecia uma promessa de eficiência na gestão –, sem a necessidade de sair do campo da democracia liberal, nem de prometer metralhar ninguém, nem de homenagear torturador. Por que os pragmáticos decidiram correr todos os riscos embutidos no voto em Bolsonaro, tendo outras alternativas para mudar a rota de voo do Brasil, é um fenômeno que ainda precisa ser melhor compreendido.)
Seja como for, essa massa de brasileiros, que decidiu a eleição, e que botou por terra a teoria de que o índice de rejeição às boutades xucras de Bolsonaro impediriam sua eleição, foi expandida em mais 9 milhões de votos no segundo turno – os pragmáticos representaram 35 milhões (ou 57%) dos quase 56 milhões de joinhas que colocaram Bolsonaro no Palácio da Alvorada.
Estamos falando de parte da classe média, do empresariado, dos executivos e dos trabalhadores, todos cansados, de um lado, do desemprego e do açoite de uma das mais profundas e longas crises econômicas da nossa história; e, de outro lado, da corrupção endêmica do país, revelada nos últimos anos pela Lava-Jato, e atribuída quase que exclusivamente aos governos do PT – uma incompreensão histórica e um julgamento deliberadamente caolho que também precisará um dia ser melhor estudado.
Se os fundamentalistas tinham como ideólogos Olavo de Carvalho e Silas Malafaia, os pragmáticos depositavam suas esperanças em Paulo Guedes, na Economia – e exultaram com a chegada de Sérgio Moro ao Ministério da Justiça.
Nesses primeiros 100 dias de governo Bolsonaro, o cenário mudou. Os pragmáticos, que estiveram dispostos a ignorar tudo – as ameaças aos direitos civis e às liberdades individuais, o constrangimento das diferenças, da diversidade e das minorias, o retrocesso em campos como cultura, educação, comportamento e preservação ambiental – em nome da promessa de melhora econômica e de limpeza ética do país, parecem estar em acelerado processo de arrependimento. Lembremos que Bolsonaro perdeu 21 milhões de simpatizantes entre outubro e março – parece óbvio que essa decepção esteja concentrada entre os 35 milhões de pragmáticos.
O tom do governo Bolsonaro tem sido dado, cada vez mais, por gente como Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Ricardo Vélez Rodriguez, ministro da Educação, e Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores. E não por Paulo Guedes e Sérgio Moro, capatazes que soam cada vez mais sem força e sem prestígio, acuados em seus gabinetes. Para regozijo dos fundamentalistas. E para desespero dos pragmáticos.
O ponto é que Bolsonaro sempre foi mainstream. Sempre foi parte "disto que está aí". Como esperar mudança de quem sempre agiu de modo reacionário diante das mudanças? Se Paulo Guedes e Sérgio Moro estão nadando contra a maré em seu próprio governo, não cabe surpresa nisso – Bolsonaro sempre nadou a favor da maré. Bolsonaro sempre foi beneficiário do sistema. Como imaginar que ele vá mexer nos privilégios estabelecidos? Bolsonaro foi eleito precisamente para manter as prerrogativas exatamente onde sempre estiveram.
Bolsonaro sempre foi conservador. Disse com todas as letras que seu projeto era retornar com o Brasil uns 50 anos no tempo. Como esperar o novo se votamos no velho? A agenda de Bolsonaro, seja ela uma ignorância sincera ou mera tática de desonestidade intelectual para manipular a reação das arquibancadas, está repleta de temas dos anos 60, tão antigos quanto "ameaça comunista" ou "resgate dos valores da família tradicional". Bolsonaro foi eleito para retroceder, não para avançar.
A cabeça de Bolsonaro é um imenso arquivo morto. Num mundo de carros elétricos autônomos e de criptomoedas e de nomadismo digital, Bolsonaro é a nostalgia do motor a combustão e do dinheiro guardado no colchão e das relações entre capital e trabalho estabelecidas na primeira Revolução Industrial. Nós elegemos o passado. Não temos o direito de esperar que daí nasça o futuro.
Bolsonaro sempre foi constrangedoramente mal preparado. Ele articula muito mal quase tudo o que diz. Nesse particular, ele é uma espécie de Dilma de coturnos. (Ou de chinelão e calça de agasalho.) Bolsonaro também sempre foi arrogante, curto e grosso. Uma espécie de Maduro sem bigodes, tiete de Donald Trump. Como esperar um estadista com olhar aquilino, com pensamento estratégico e com iniciativas sagazes para o país? Nós elegemos o "mito" pelas suas bravatas agressivas, não porque ele tenha qualquer condição de ser um líder inspirador.
Agora, diga-se: Bolsonaro sempre disse a que veio. Nunca enganou ninguém. Sempre foi perfeitamente transparente em sua rudeza. Estamos recebendo exatamente o que encomendamos.
A única surpresa que alguém pode alegar, nessa imensa aridez imóvel em que o Brasil se transformou, é a tremenda inabilidade política do governo. Era de se esperar que ao menos isso Bolsonaro tivesse: força para aprovar as reformas que anunciou, capacidade de articulação política, um mínimo de coesão interna em sua administração. Por enquanto, até onde a vista alcança, a única coisa que se pode ver é inépcia.
Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Founder da The Factory e Publisher do Projeto Draft. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.
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