Topo

Histórico

Adriano Silva

A verdadeira questão por trás do churrasco que você comeu ontem

Adriano Silva

25/03/2019 14h24

 

Você tem um cachorro que adotou ainda bebê, e que dorme com você na cama, e que come com você à mesa, e que você chama pelo nome, como se fosse um filho traquina e amoroso, e que lhe responde pelo olhar, antes mesmo que você precise dizer qualquer coisa?

Você tem um gato que entra e sai de onde quiser, que aparece e que some quando bem entender, porque na verdade vocês dois sabem que ele é o dono da sua casa?

Então me diga: você pingaria uma substância no olho do seu cachorro, até cegá-lo, para testar um novo medicamento ou produto de higiene ou de limpeza? Você forçaria seu cachorro a inalar a fumaça de 100 cigarros por dia, destruindo seus pulmões, para provar a relação entre nicotina e câncer? Você sedaria seu gato com clorofórmio, e o abriria vivo, com o coração ainda batendo, para a aula de anatomia do seu filho ou da sua filha?

Se essas ideias soam insuportáveis com nossos cães e gatos, por que consideramos que tudo bem levá-las a cabo com coelhos, chimpanzés, sapos ou camundongos?

Ou então: você criaria cachorros para o abate, em existências abreviadas, com o fim único de engordarem até a hora de vendê-los para um frigorífico? Seu cachorro, então, não seria mais um bicho – seria chamado de "proteína animal". Ele tomaria um tiro na cabeça, seria içado pelas patas para ter seu pescoço cortado e seu sangue extraído (ele ainda estaria respirando ao ter a jugular retalhada), para então ser desmontado – suas patas e rabo seriam decepados, seu couro seria arrancado de uma só vez por um bobina cheia de ganchos, suas vísceras seriam retiradas de baciada, até que a carcaça estivesse pronta para seguir adiante e contribuir para que cada brasileiro continue ingerindo seus 26 quilos de carne por ano, mantendo por aqui o título de terceiro maior consumo per capita do mundo.

(Ah, sim. Sabe aquela ninhada linda de puppies que você viu semana passada na feira de adoção? Esqueça. São vitelos. Leitões. Galetos. Também seriam mortos, esquartejados e iriam parar na panela antes de completarem um ano de idade.)

Por que essa ideia nos causa repulsa, mas não o que acontece todo dia com milhões de bois, vacas, ovelhas, porcos e frangos?

Mais: que tal jogar seu gato vivo numa panela de água fervente? Que tal ir jantar nesta semana num restaurante em que você possa escolher o seu gatinho na vitrine para recebê-lo, minutos depois, cortado em cubos, com o rabo ainda se debatendo no prato, como um item decorativo, enquanto você aprecia o carpaccio?

Se isso é impensável com seu bichano, porque é tranquilo que ocorra com lagostas e com peixes no restaurante japonês mais próximo?

Eis o ponto: animais têm sistema nervoso. Sentem dor. Têm medo. Têm instinto de autoproteção. Reproduzem, têm prole, protegem seus rebentos. Buscam a vida. Fogem da morte. E não existem em função dos seres humanos.

Um jeito de pensar a superioridade da nossa espécie sobre todas as outras é dizer que estamos no topo da cadeia alimentar e que temos o "direito" (natural, decretado divinamente ou obtido na ponta da lança, da faca e da flecha) de comer de tudo, de mastigar todos os outros.

Outro jeito de pensar a superioridade da nossa espécie sobre todas as outras é imaginar que nós não precisamos mais matar e devorar outros animais para sobreviver – nós superamos, exatamente pelo cérebro que desenvolvemos (provavelmente à custa de muita proteína animal ao longo desses anos todos, diga-se), a condição de obter uma nutrição muito mais equilibrada e saudável, sem a necessidade de deglutir outros animais.

Mas você pode, também, questionar esse paradigma da superioridade humana sobre todas as demais espécies. Você pode simplesmente imaginar que nós não temos o direito de causar sofrimento, dor, morte, tortura, confinamento, desconforto físico ou estresse a nenhum outro ser vivo do planeta – pertença ele a nossa própria espécie ou a qualquer outra.

Nesse caso, permita-me dizer, ferrou.

Se você estender a ética com que trata seu cachorro ou seu gato, ou qualquer outro animal que componha a sua família, humano ou não, a todos os demais bichos do planeta, significa que não apenas você vai deixar de comer carne vermelha, mas que você também vai deixar de comer, por uma questão básica de coerência, qualquer outro tipo de carne – do camarão à codorna.

Esse raciocínio, por uma questão de lógica, não para por aqui. As implicações dessa reflexão não se restringem ao aspecto gastronômico. Você deixará de consumir outros produtos que advenham do abate de animais.

Trocar um bife por um prato com folhas, grãos e legumes é muito mais fácil do que abrir mão do seu sapato ou jaqueta de couro, além de adesivos e fósforos, ou do colágeno utilizado em cosméticos, ou da gelatina usada na fabricação de medicamentos, filmes radiológicos e chicletes. A lista dos produtos que derivam da carnificina que impomos às demais espécies é gigante.

Se esse dilema não lhe toca, e você não dá a mínima pelos direitos dos animais, a começar pelo direito deles de continuarem vivos, ainda assim faça uma coisa em prol de si mesmo, em benefício da sua própria espécie: coma menos carne. Seja carnívoro – mas reduza a quantidade e a frequência com que suja o prato de sangue.

O rebanho bovino mundial é superior a 1 bilhão de cabeças – um número semelhante ao do rebanho caprino. O rebanho ovino global é ainda maior: 1,2 bilhão de cabeças. Já as aves para abate sequer são contadas como indivíduos – fala-se de uma produção anual de quase 100 milhões de toneladas de frango mundo afora. Ou seja: não tratamos mais as aves como bichos, mas como "carne", como uma enorme massa de partes desmembradas, processadas, reagrupadas, estocadas e vendidas por peso.

O inchaço dessas populações não reflete o desenvolvimento natural das espécies – trata-se de uma anomalia gerada pela ação humana. O rebanho bovino brasileiro, o segundo maior do mundo, tem quase 250 milhões de reses – das quais 35 milhões são abatidas todo ano.

Pense no consumo de água dessa bicharada, no desmatamento empreendido para gerar novas áreas de pastagem, nos gases do efeito estufa expelidos às toneladas na atmosfera por tantos organismos sendo alimentados a toque de caixa para o abate.

Bem, se uma luz acendeu em sua cabeça, por mais tênue que seja, voilà, você começou a compreender o incômodo que sustenta toda a ideia do veganismo.

Foi isso que me aconteceu esses dias. Já tinha deixado de comer frango, com uma espécie de nojo, há muitos anos. Ao fazer churrasco, mais recentemente, comecei a perceber que lavava as mãos várias vezes – o cheiro do sangue, da carne crua, me deixava nauseado.

Há dois anos, testemunhei meu filho, um onívoro bom de garfo, enfrentar uma crise ética ao visitar Tsukiji, o maior mercado de peixes do Japão, em Tóquio. Ele tinha então 12 anos, sempre adorou sashimi, mas ficou muito mexido ao assistir in loco a transformação de tantos animais, de seres vivos em comida humana. A morte tem cheiro. A morte é fria. Ela impregna os ambientes. Estar perto da morte, propiciar a morte, ingerir a morte são sensações ruins.

Portanto, se você gosta de bisteca suína, mas considera repulsiva a ideia de matar, sangrar, estripar e esquartejar um porco, saiba que você não é tão carnívoro assim. Bisteca não é aquilo que vem na bandeja bonitinha e antisséptica do supermercado. Bisteca é o pedaço de um cadáver, você está comprando um naco arrancado a um bicho que foi morto e fatiado.

Se você, como eu, vê cada vez menos diferença entre seu pet e o animal que dá origem ao hambúrguer ou ao steak que lhe servem no restaurante, saiba que talvez haja, nessa conversa, um meio-termo possível.

De um lado, está o sujeito que tem prazer em comer um leitão olhando para as feições desfiguradas do animal, cuja cabeça jaz inerte sobre uma bandeja, encimando seu próprio corpo carbonizado no centro da mesa, numa cena macabra composta por olhos derretidos, orelhas esturricadas e uma maçã enfiada na boca (como um símbolo grosseiro de humilhação da caça pelo caçador).

De outro lado, está o indivíduo vegano que não aceita comer nem mesmo uma pizza de rúcula com abobrinha cuja massa tenha sido produzida com um ovo que tenha saído da galinha – mesmo que isso (espera-se!) não tenha causado sofrimento à poedeira.

Esse meio-termo talvez seja o vegetarianismo. Aí estão as pessoas que não se alimentam de carcaças. Mas que consideram aceitável consumir derivados que não tenham sido obtidos à custa da morte de animais, como queijo e iogurtes. (Diga-se que o vegetariano também consome subprodutos do abate de animais, como couro, glicerina e fertilizantes – estes, aliás, utilizados para produzir mais e melhores vegetais.)

A questão que os veganos formulam aos vegetarianos é que há sofrimento, por exemplo, na ordenha industrial. Ao consumir laticínios, você não está se lambuzando na morte precoce de uma vaca, mas você não evita a exploração de um animal, separado da sua cria, que deveria estar no campo, com seu bezerro a tiracolo, e não preso pelas glândulas mamárias a uma máquina.

O mesmo vale para as galinhas – ao comprar ovos você não está patrocinando o morticínio de frangos, mas contribui para a subjugação de uma espécie que teria um outro tipo de existência não tivesse sido transformada de modo forçoso em fornecedora oficial dos nossos omeletes, doces, massas e pães.

O vegetarianismo, ética alimentar que assumi recentemente, é como o cara que admite a tourada, desde que o touro volte vivo para o curral. Já o vegano é o cara que não admite que a diversão humana possa justificar coisas como rodeios, gineteadas, rinhas de galo, briga de cachorros ou farras do boi.

Conceitualmente, estou com os veganos. E você, consegue discordar deles?

 

Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Founder da The Factory e Publisher do Projeto Draft. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.

Sobre o Autor

Jornalista e empreendedor, CEO & Founder da The Factory e Publisher do Projeto Draft. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico.