Topo

Histórico

Adriano Silva

A grande dor de existir – esta eterna companheira

Adriano Silva

12/02/2020 19h18

 

O cérebro humano é o que de mais sofisticado a Evolução produziu até aqui. Um mecanismo tão robusto que conseguiu conceber a própria Evolução que o gerou. Além de tecer a ideia de Deus. E de gerar Ciência e Arte. E de, diante das possibilidades e das escolhas, construir a Ética. E de, diante da curiosidade, produzir Filosofia.

No entanto, nosso cérebro, ao colocar-se afora e acima da manada, com sua capacidade de raciocínio e de análise, de dúvida e de reflexão, de linguagem e de abstração, também desenvolveu a angústia – um traço eminentemente humano, uma espécie de efeito colateral da inteligência.

Ao ir além dos instintos, ao desejar mais do que a mera sobrevivência, ao ter consciência de si mesmo e da própria finitude, ao se questionar a todo momento, ao não saber ao certo de onde viemos nem para onde iremos, ao ter de lidar com a liberdade e com as responsabilidades da autodeterminação, e ao tentar extrair algum sentido ou explicação disso tudo, o cérebro humano também nos brinda com um bocado de sofrimento psíquico – que vem no pacote como um defeito de fabricação.

Você sabe do que estou falando.

Todo dia é um desafio. O mesmo desafio. Ele se recobre de cores e formas variadas, mas no fundo é uma coisa só: a imensa barra de viver. O desassossego de tentar entender o que não compreendemos. A aspereza de tentar colocar alguma ordem no vasto caos que nos cerca.

Trata-se de um desafio que nunca estará resolvido. Quanto mais sabemos, mais enxergamos o tanto que não sabemos. Ou seja: só pode haver paz de espírito na ignorância. No fundo, só os animais são felizes – eles não se cobram, não se comparam, não se julgam; eles só vivem. Você nunca será feliz como o seu cachorro. Você nunca terá a tranquilidade do seu gato.

Você é maravilhosa e desgraçadamente humano. Ao nascer com esse cérebro, você perdeu a inocência. Você comeu, ao nascer, da árvore do conhecimento. Daí para frente o sofrimento se torna seu companheiro mais constante.

Você sabe do que estou falando.

Às vezes é difícil dormir à noite. A cabeça não para de funcionar. Como um algoz que fantasia com os piores cenários, que revive todas as dores passadas, que antecipa fracassos que sequer acontecerão, que lhe martela com tudo que você poderia ter feito melhor, com tudo que você não fez.

Às vezes é difícil acordar de manhã, e sair debaixo das cobertas, e recusar o útero morno da cama. Seu cérebro não quer encarar o novo dia. Gostaria de voltar para terreno do sonho, e talvez viver para sempre nesse esconderijo particular, em que tudo passa como um filme – dirigido por você.

Nessas horas, você daria tudo para pesar menos sobre si mesmo. Para não ser como um balde que cai ao fundo do poço levando consigo toda a corda que poderia tirá-lo de lá.

E quando você se dá conta desse funcionamento, sente raiva. De si mesmo. Por se sabotar. Por abraçar o melodrama. Por se admitir assim, diante do espelho. Por se expor dessa forma, diante dos outros. Mais ou menos como quando, insone, você fica irritado por não conseguir dormir, o que só prolonga a sua insônia.

E tem o pessimismo, que sempre vê o copo meio vazio – e se recusa a enxergar a metade cheia. E que sempre acha que não vale a pena, que não vai dar certo, que é melhor não.

E tem a calibragem sempre desregulada da sua autoestima. A relação mais complicada e agastada e demandante que temos na vida é com a gente mesmo. Você é o seu feitor – e o seu tutor. Você é o seu refém – e o seu carrasco.

A gente dificilmente consegue administrar o próprio ego do jeito mais correto e justo. Você é o que cara que passa a mão na própria cabeça quando deveria se cobrar. E é o cara que se chicoteia quando deveria acolher a si mesmo.

Sim, eu já sei que a felicidade é um momento – e não um estado que se estabelece. É uma lufada – e não um ambiente em que se entra. Não é um lugar a que se chega, mas um instante que vem e que passa.

A gente leva uma vida inteira para aprender isso.

E outra vida para identificar os gatilhos que nos jogam para cima ou para baixo.

Sim, eu já conheço um bocado de coisas que me deixam triste. E muitas vezes brinco deliberadamente com isso, porque a melancolia é uma droga que dá barato.

Assim como conheço algumas coisas que me trazem alegria. Aprendi que muitas vezes ser alegre – ou soturno – é uma questão de escolha. Brincar de sentir felicidade ou de abraçar a tristeza depende muitas vezes da autossugestão que você decide empreender naquele momento em sua vida.

Trata-se, acredite, de dois prazeres. Um vem do enlevo. O outro, de lamber as próprias feridas – sejam elas reais ou imaginárias. Mas são duas sensações de modo geral agradáveis – e viciantes.

E, sim, eu também já conheço a ansiedade, essa inimiga íntima.

A gente sofre por tudo que ainda há por fazer, por tudo que ainda não aconteceu, por tudo que ainda vem pela frente, por tanta coisa que é preciso resolver.

Com a cabeça no amanhã, com uma bruta angústia diante do futuro, que é sempre uma quimera, a gente deixa de viver o hoje – o único lugar em que a vida acontece.

E a gente sofre por tudo que já passou. A grande dor das coisas que não voltam mais. A gente sente falta do que ficou para trás. Saudade funda de quem fomos – e das pessoas, situações, coisas, lugares com que cruzamos.

Com a cabeça no ontem, com uma bruta angústia diante do passado, a gente se dedica a adorar fotografias antigas, quadros de natureza morta – e negligencia o dia que brilha diante dos nossos olhos.

Por fim, quando a gente consegue equilibrar essas coisas todas, e acha um balanço melhor nesses pêndulos emocionais, e quando a gente encontra um jeito de superar o esmerilho da ansiedade e de driblar o alçapão da nostalgia, e quando você se considera finalmente pronto para viver de maneira mais serena e contente, então, para sua surpresa (e indignação), bate um vazio, um marasmo, um desejo de romper com a decoração perfeita da casa.

Instala-se o tédio de ter resolvido tudo, de ter encaminhado todas as questões relevantes em sua vida. A ausência de ter o que arrumar, a lacuna de não ter uma dor parar chamar de sua, gera uma espécie de sensaboria. Como estar ao volante de um carro que estacionou e jogou fora o motor. Uma sensação de inutilidade. Um gosto de ponto final.

Eis o que se descobre, lá em cima da escadaria, depois de toda a gastura de subir degrau a degrau: solucionar tudo é morrer em vida. Não há trama sem conflito. Sem crise não há história nem enredo. Sem problema não há tensão nem estímulo.

Trata-se do fastio da realização. Uma massa cinzenta e pegajosa, que lhe envolve e imobiliza. Como se o sentido da vida fosse enfrentar e resolver problemas. Como se, quando eles ficassem para trás, junto com todo o sofrimento que nos causam, a vida perdesse grande parte do seu tempero. E do seu – opa, olha ele aqui! – sentido. E só restasse um rotundo e silente vazio no meio da sala.

Então a gente passa a vida toda no campo de batalha, sonhando um dia sossegar. Para perceber, logo aqui na frente, depois da peleja, que o sossego impõe um mormaço muito pior do que a mais renhida das lutas que você encarou.

 

Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Draft Canada. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.

Sobre o Autor

Jornalista e empreendedor, CEO & Founder da The Factory e Publisher do Projeto Draft. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico.