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Adriano Silva

Sobre a depressão de Nilmar – e a ansiedade, essa doença que nos consome

Adriano Silva

15/04/2019 09h58

Nilmar Honorato da Silva. 34 anos. Um dos grandes centroavantes que o Inter revelou. Meu ídolo, que tantos sorrisos estampou em meu rosto, por quem sempre torci – mesmo quando envergou outras camisas.

Nilmar. Garoto do bem, bom de bola, goleador. Um nove raçudo, veloz, vertical, com quase 200 gols marcados numa carreira brilhante, precocemente abortada em 2017, quando foi repatriado pelo Santos depois de mais um período jogando no exterior.

Nilmar abreviou sua carreira por decisão própria, em nome de uma doença: a depressão. Essa macambúzia prima-irmã da ansiedade, que forma com ela uma espécie de dragão de duas cabeças que já se transformou no novo Mal do Século.

Já se sabia da doença de Nilmar. Mas nesse fim de semana, pela primeira vez, ele falou de peito aberto sobre a questão, em entrevista a Roger Flores, seu ex-companheiro de Corinthians, no Esporte Espetacular, programa dominical da TV Globo.

Não deixa de ser irônico que um menino que tantas alegrias deu a tanta gente tenha sido soterrado pela tristeza.

Nilmar deixou entrever às câmeras que se cobrava muito. Com seu biotipo leve, tinha que provar a cada rodada, dentro de campo, para si mesmo e para os outros, que poderia superar as defesas adversárias. Se cobrava mais tempo, e tempo de qualidade, com os filhos. Se cobrava por estar sentindo, e por não conseguir superar, aquela melancolia brutal, cinzenta, que lhe envolvia cada vez mais e que lhe paralisava e que, em determinado momento, lhe fazia chorar o tempo todo.

Nilmar é um ótimo jogador – que, ao que parece, se açoitava para ser ainda melhor. Ele aparenta ser um bom pai – que se martirizava para ser um pai irretocável. Estava ali um ser humano que não se permitia a falha, que não admitia sequer estar sofrendo – se cobrava ter sempre um sorriso inabalável e acolhedor para oferecer a sua mulher, a seus filhos, a sua família. Como talvez se cobrasse por títulos sempre maiores, e por ser artilheiro de todos os campeonatos, em todos os anos, e por voltar a ser convocado à Seleção Brasileira.

Como tantos indivíduos que sofrem com a depressão, Nilmar talvez seja, no fundo, um ansioso crônico.

E aqui eu posso falar como alguém que veste essa mesma camisa malvada, e que joga esse mesmo esporte cruel. (Escrevi um livro sobre isso. Um dos artigos você pode ler aqui.)

Eu sei como é. De tanto que você idealiza as coisas, você deixa de curti-las. De tanto que você só enxerga a parte vazia do copo, você deixa de enxergar o tanto que seu copo está cheio. De tanto que você vive pelo chicote das suas próprias expectativas a seu respeito, e pelas expectativas dos outros que você introjeta, hiperdimensiona e assume como suas, você se torna um autocobrador insaciável, um insatisfeito cuja insatisfação é impossível de satisfazer, um sujeito que vive pela eterna falta do que não tem, do que ainda falta conseguir – ou então pelo eterno medo de perder aquilo que já alcançou.

De tanto querer ter tudo sob controle, com risco zero (e a vida é incontrolável; trata-se de um fluxo com o qual podemos apenas aprender a lidar da melhor maneira possível), o sujeito implode. É muita pressão, e do tipo que aleija: a pressão autoimposta.

Eis aí uma receita certeira para a infelicidade. (E eu nem sei se ela traduz o caso do Nilmar – estou revelando aqui, sobretudo, o que aprendi trilhando com meus próprios pés esse calvário.) A gente deseja muito, a gente acalenta sonhos que nascem como bebês risonhos e às vezes se transformam em verdugos. A gente idealiza nos outros um sucesso que nos agride (e que quase nunca é real – se víssemos a grama do vizinho como ela realmente é, perceberíamos que ela também não é tão verde nem tão perfeita). Então a gente não se perdoa, a gente não se dá folga por um segundo sequer.

Numa profissão em que há tantos profissionais pouco profissionais, tanto talento que trata a si mesmo e a própria carreira com inconsequência, em especial aqui no Brasil, em que o futebol insiste em ser uma indústria muito amadora, Nilmar talvez esteja sendo punido por ser responsável demais, por se levar a sério demais, por buscar de modo inegociável uma perfeição que não existe em pessoa alguma, em profissão alguma, em lugar algum.

Especialmente porque, com Nilmar, tudo isso acontece numa carreira curtíssima, que mal começou e já termina. Uma carreira com alta taxa de estresse – em que você não pode errar, em que é preciso vencer sempre (especialmente quando a sua função específica é marcar os gols do seu time). Uma carreira muito competitiva – em que um dá certo, enquanto mil ficam pelo caminho. E em que o profissional se torna uma pessoa pública, que catalisa os amores, os ódios, a adoração e as frustrações de milhões de pessoas – quando só tem vinte e poucos anos e, na maioria das vezes, não traz o menor preparo emocional para lidar com pesos dessa monta.

De tanto querer ter tudo sob controle, com risco zero (a vida é incontrolável e o risco, inevitável), o sujeito implode. É muita pressão, e do tipo que aleija: a pressão autoimposta.

E não é diferente com executivos, empreendedores, profissionais liberais. Ou com donas de casa, estudantes, operários. Ou com mães, pais e filhos e filhas de família. Somos milhões que se comportam assim. E que se impõem esse tribalium maluco. Como contraponto dessa ansiedade toda, que nos desassossega, que não nos permite um instante de satisfação com aquilo que já alcançamos ser e com aquilo que já conquistamos, surge um gatilho que o corpo usa quando não aguenta mais tanta descarga de adrenalina – uma chave em que você desliga a si mesmo. Eis aí, ela, a prima-irmã (ou a filha, o alter ego) da ansiedade: a depressão.

Uma vez tendo caído nessa armadilha, você entra numa gangorra insalubre, alternando picos de euforia com crises de pânico que lhe derrubam até os vales mais profundos da existência, onde não há luz nem som, nem esperança, nem desejo de absolutamente nada, nem energia para realizar coisa nenhuma. É quando o sujeito, para compensar quimicamente a adrenalina liberada pelos momentos de ansiedade, arrasta o rosto nos subterrâneos lodosos da depressão. Trata-se de uma estufa pegajosa, uma espécie de kryptonita capaz de pôr a nocaute até mesmo super-heróis que já mandaram estádios inteiros, lotados, pelos ares.

O ansioso é um cara que não se dá o direito à satisfação. Nunca. É um sujeito que está sempre em débito consigo mesmo – que cria para si uma fatura impagável. Ele se cobra ao limite da angústia. Até que desiste e tudo vira modorra e desespero. Em seguida, o ciclo começa de novo. Em moto-contínuo.

Volto a Nilmar. Difícil pensar num cara mais bem-sucedido. Jovem, talentoso, reconhecido, amado. Um menino bem-apessoado que veio do interior, construiu uma carreira vitoriosa, enriqueceu, encontrou uma mulher bonita e companheira, gerou um casal de filhos lindos e saudáveis.

Agora pense no quanto esse sucesso todo, uma espécie de conto de fadas para a maioria dos seres humanos (ao menos quando você olha de fora), pode ser precisamente um dos gatilhos para as crises de ansiedade que o levaram ao inferno da depressão. Porque uma trajetória de herói, muitas vezes, gera ainda mais compromisso e dívida. Porque, quando você construiu a história de príncipe com que sonhou para si lá atrás, há grande desassossego na ideia de perdê-la.

Se cada um de nós conseguisse ser feliz com aquilo que é, e se pudesse dormir tranquilo com aquilo que tem; e se tivéssemos o desapego de reconhecer a impermanência de todas as coisas, inclusive daquilo que mais amamos, e inclusive de nós mesmos; e se tivéssemos a confiança de que aconteça o que acontecer, a gente vai dar um jeito; e se encontrássemos paz em simplesmente fazer o nosso melhor, e não se preocupar com mais nada, especialmente com as coisas que estão fora do nosso controle, bem, não haveria tanta ansiedade nem tanta depressão mundo afora.

Mas aí talvez fôssemos seres perfeitos e não seres humanos. E o ponto aqui é exatamente esse: admitir a que a vida é imperfeita. E que, por mais que nos esforcemos, nós também o somos. E que, ainda assim, vale a pena vivê-la intensamente. E que, ainda assim, podemos escrever uma história bonita. Como a sua, Nilmar, meu irmão.

 

Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Founder da The Factory e Publisher do Projeto Draft. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.

Sobre o Autor

Jornalista e empreendedor, CEO & Founder da The Factory e Publisher do Projeto Draft. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico.