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Adriano Silva

Quarentena: entre as incertezas do futuro e o falso conforto do passado

Adriano Silva

01/04/2020 10h58

Estamos, nesse momento, no estômago da quarentena. O mundo não voltará a funcionar na semana que vem. É possível que atravessemos todo o mês de abril no porão. Mas a verdade é que ninguém sabe nem quando nem como voltaremos à normalidade de nossas vidas e carreiras.

Trabalho sem endereço comercial – ou seja, em home office – há dez anos. Ao longo dessa década, tenho cocriado com dezenas de pessoas, em vários negócios, em três empresas, em dois países. A virtualidade é um ganho de eficiência digital ao qual estou acostumado.

Ou seja: o distanciamento físico causado pela pandemia de coronavírus é só mais um dia na vida. Mesmo assim, esse período tem sido desafiador. Pelo risco de doença e de morte, entre os meus, que estão longe de mim, e entre todos os demais. E por todas as dúvidas e receios com que todos temos ido dormir e com os quais acordamos no dia seguinte, sem encontrar resposta ou lenitivo.

O duro nesse período, com tudo fora de esquadro, é lidar com os pensamentos e os sentimentos que afloram dentro da gente vestidos como verdugos.

UM BALAIO DE INCERTEZAS EM RELAÇÃO AO FUTURO

Sim. Claro. Eu conheço a receita. Viver aqui e agora. O dia de hoje. No lugar onde você está. Sendo quem você é. Fazendo aquilo que você pode com os recursos que você tem. Para não sofrer à toa, cheio de ansiedade, querendo antecipar o futuro – e nem cheio de nostalgia, querendo reviver o passado.

Sim. Claro. Mas como é fácil escorregar desse plano tão simples e óbvio… especialmente quando o presente se apresenta tão duro.

Confesso que sempre estive um pouco desajustado em relação ao tempo. Faz parte de quem eu sou. Viajar no tempo, como uma fuga de encarar o hoje, é um (mau) hábito da minha mente.

Curiosamente, em minha sanha escapista, sofro mais com o passado do que com o futuro.

Sou em geral confiante em relação ao que virá. Mas em alguns momentos, quando minha sensibilidade ao risco fica mais acirrada por qualquer motivo (crises reais ou imaginárias, perigos iminentes ou não), o porvir vira grande fonte de preocupação.

É que gosto de planejar os movimentos, de ponderar as hipóteses, de traçar os cenários. Tenho sido, vida afora, um tomador de riscos. Não tenho prazer específico em andar na corda bamba. Mas nunca deixei de empreender decisões relativamente ousadas, em nenhum campo da vida.

Sempre tive disposição para saltar do penhasco – desde que os riscos estivessem bem medidos. E sempre que essa sensação de relativo controle me escapou, a insônia azedou meu travesseiro.

(Curiosamente, quando tudo foge absolutamente ao controle, quando é impossível prever cenários, a ansiedade diminui. Como agora, nessa crise mundial inédita. Não há o que fazer senão seguir vivendo e reagir ao que virá. Então estamos prontos, exatamente porque não há como se aprontar. Ei, e se adotássemos essa postura para todo tipo de ansiedade? Talvez essa avalanche sirva, paradoxalmente, para a gente aprender a ficar mais tranquilo, e perceber que o que quer que venha acontecer, a gente dará um jeito.)

O PASSADO COMO UM ESCAPE DAS AGRURAS DO PRESENTE

Olhar para trás, ao contrário, sempre me machucou mais do que olhar para frente. Aos 9 anos senti saudade do ano de 1978 – quando eu tinha 7. E tem sido assim desde então. Saudade, aprendi, é só apreço por um trecho da vida que já não ameaça, por estar vivido, por estar vencido, por ser conhecido.

Por isso, nostálgicos sentem saudade até mesmo de períodos da vida que não foram tão bons assim. Uma dor pretérita, dominada, machuca menos do que a ansiedade diante do futuro (mesmo quando a folha em branco à nossa frente tem 50% de chances, ou mais, de revelar alguma coisa boa).

Saudade não é apenas amor ao que passou – é o desejo de encontrar um esconderijo, de recusar as brigas marcadas na agenda para hoje, de se refugiar numa fotografia que promete estabilidade e controle em sua eterna fixidez.

Nostalgia é um pedido de asilo temporário das durezas do presente na idealização que fazemos do passado. É reassistir a um filme clássico por medo de se decepcionar com os novos lançamentos.

À medida que avanço em direção à maturidade, e vou me compreendendo melhor, os picos de melancolia tem ficado mais espaçados. (Talvez eu tenha alongado a curva da melancolia e ela tenha se tornado crônica.)

Por outro lado, talvez pelo fato de que há cada vez mais anos de vida atrás de mim do que à minha frente, a vertigem do tempo voando, escoando, deixando tudo para trás, parece ganhar força. A grande dor das coisas (e das pessoas) que não voltam mais parece se intensificar.

E não adianta retornar a lugares, reencontrar pessoas, ressuscitar situações – você, as pessoas, os lugares e as situações não são mais os mesmos. (Obrigado, Heráclito.)

Ou a gente abraça a impermanência, e trata de abandonar o passado, com todo o amor de mundo, e trata de enterrar o que já foi, com todo o zelo, ou estaremos fadados a sofrer muito – e inutilmente.

A vertigem do tempo tem vindo, para mim, desde que saí do Brasil, acompanhada de uma prima-irmã: a vertigem espacial. Vivi trechos importantes da minha vida em diferentes lugares. Tenho parte do meu coração enterrado em meia-dúzia de cidades em três continentes.

Da mesma forma que uma vida longa, como a que vivemos hoje, tende a aumentar a vertigem do tempo, um mundo pequeno, ultraconectado, com acesso físico e virtual facilitado, tende a aumentar a vertigem do espaço.

Quando você muda de lugar, de cidade, de país, essa sensação de estar um pouco perdido no mundo se agudiza.

O processo de adaptação a uma nova vida, num lugar diferente, toma tempo. Por mais que você já tenha vivido essa experiência antes, você nunca viaja só com o seu guardarroupa – você transporta suas raízes para onde quer que vá.

Então há uma sensação de degredo. Você não pertence mais ao lugar que deixou, mas ainda não pertence ao lugar para onde veio. Você perde uma identidade e demora a construir outra. Seu entorno muda. E você precisa mudar também. Ou estará condenado a ser eternamente estrangeiro.

Há um sentimento de exílio. Você está longe de tudo. Vive num limbo. Os antigos laços lhe puxam para trás. E é preciso lutar contra a força dessa marcha à ré permanentemente engatada. Ao mesmo tempo, o novo ambiente resiste a lhe permitir estabelecer novos laços. Ou lhe cobra caríssimo por eles. E será preciso lutar também contra essa força reativa e impor a sua marcha à frente.

Sob pena de você jamais vir a desembarcar de verdade no novo lugar. E jamais desfazer a mala simbólica que traz dentro de si.

 

Esses têm sido meus dias de quarentena até aqui. Tentando viver o aqui e o agora e um tantinho fustigado pela vertigem do tempo e do espaço.

E os seus dias de isolamento, nessa proximidade às vezes insalubre consigo mesmo, como têm sido?

 

Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Draft Canada. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.

 

Sobre o Autor

Jornalista e empreendedor, CEO & Founder da The Factory e Publisher do Projeto Draft. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico.