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Adriano Silva

Só há um jeito de proteger o que você tem: permitir aos outros ter também

Adriano Silva

26/12/2019 10h00

 

Há países muito desiguais e injustos, como o Brasil.

E há países mais equilibrados, que resolvem melhor a sua organização social, negociando melhor os interesses individuais – muitas vezes antagônicos – entre seus vários atores, em nome da construção do bem-comum. Com isso, geram lugares melhores para se viver.

Pode-se acusar a elite de países como o Brasil de grande insensibilidade, ou de burrice mesmo, ao perpetuar a lógica de só resolver a sua parte da equação, e ignorar a situação do resto da população. (Ou ao montar uma equação em que seus ganhos dependem do vilipêndio de todos os demais.)

Da mesma forma, pode-se elogiar a elite de países como a Bélgica ou o Japão por terem desenvolvido a noblesse obligue – o sentimento de obrigação dos mais ricos de cuidar para que os mais pobres vivam com condições mínimas de dignidade.

No entanto, a crítica que se faz à elite brasileira, que deserda historicamente, e de modo deliberado, milhões de semelhantes, também pode ser feita às sociedades de vários países desenvolvidos, na sua relação com os povos de outros países.

A própria Bélgica, por exemplo, há pouco mais de cem anos, perpetrou barbaridades no Congo. Escravizou e mutilou muita gente – estima-se que a sede do Rei Leopoldo II por marfim e por borracha tenha gerado o genocídio de até 15 milhões de congoleses.

(The Heart of Darkness, de Joseph Conrad, o romance que inspirou o filme Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, foi, por sua vez, inspirado naquela África brutalizada pela Europa.)

Qual o facilitador moral de uma atrocidade dessas? Ora, quem morreu ou perdeu partes do corpo não era branco, não era europeu, não era caucasiano, não era belga. As vítimas eram vistas como seres diferentes, exóticos, como uma sub-raça, que falava outra língua, tinha outros costumes, comia outra comida, professava outros credos.

O próprio Japão, há menos de cem anos, estava em plena escalada imperialista no Sudeste Asiático. Começou invadindo a China, em 1894, e não parou mais até o fim da Segunda Guerra, meio século depois. Estima-se que os japoneses tenham assassinado tem torno de 30 milhões de filipinos, malaios, vietnamitas, cambojanos, indonésios e burmeses. E pelo menos 23 milhões de chineses, dentro e fora da China.

Outra fotografia impressionante: a Alemanha nazista dizimou seis milhões de judeus e nada menos que 20 milhões de russos. Os russos têm o direito de produzir o seu A Lista de Schindler, o seu A Vida é Bela, o seu O Menino do Pijama Listrado. Na proporção de um para três.

Mais: se você fosse um prisioneiro de guerra dos nazistas e tivesse origem britânica, estadunidense, australiana, neozelandesa ou canadense, você teria 4% de chances de morrer antes do fim do conflito. Se você fosse russo, suas chances de morrer como prisioneiro nazista subiriam para 57%.

De novo: qual a justificativa moral para essa discrepância no barbarismo, para essa virulência seletiva? De novo, a sensação de que o outro não se parece conosco, de que ele não é um igual. Então você tem pruridos em matar outro branco, anglossaxão como você. Mas se o oponente for russo, e vier lá do canfundós gelados da Ásia, e tiver sangue cazaque, cossaco, mongol, checheno, tártaro, o tiro vem fácil.

Da mesma forma, os japoneses degolavam a rodo com suas katana no Extremo Oriente, e usavam as mulheres dos países invadidos como escravas sexuais de suas tropas, porque não consideravam aqueles povos como companheiros de espécie, como semelhantes dignos de respeito. Não bastava ser humano, era preciso ter nascido na ilha do sol nascente. Ou você era lixo.

E veja, estamos falando de dois países bastante civilizados, com índices de bem-estar internos bem desenvolvidos.

Essa mesma frieza e essa mesma indiferença, que rapidamente descambam para o medo, e depois para o ódio, e depois para a agressão, estão na base do olhar dos Jardins para Heliópolis, ou do olhar do Leblon para o Morro do Alemão, ou do olhar do Moinhos de Vento para Alvorada. Etc.

Quando os estrangeiros não entendem como podemos nos matar tanto uns aos outros  – foram 51 589 homicídios registrados no país em 2018 –, e por que permitimos que crianças durmam na rua, sem comida e sem escola, ou que se prostituam à beira de rodovias, e por que ainda temos favelas e fome, e gente sem água tratada e sem esgoto, se estamos há décadas entre as dez maiores economias do mundo, a resposta a esses observadores é relativamente simples: os brasileiros que possuem alguma coisa veem e tratam os brasileiros que nada têm da mesma forma que as sociedades dos países desenvolvidos veem e tratam os povos menos afortunados do mundo.

Quando os Estados Unidos falam em defender as "vidas americanas", adicionando um adjetivo pátrio ao substantivo "vida", impondo essa gradação gentílica ao valor da existência humana, como se a integridade de um cidadão estadunidense valesse mais do que a de qualquer outro ser humano do planeta; e quando os Estados Unidos, em nome de proteger seus cidadãos de supostas ameaças, derramam bombas com seus drones sobre os civis de países considerados inimigos, força que jamais empregariam para impor a segurança dentro de suas próprias fronteiras; isso reflete exatamente como pensa e age grande parte da polícia brasileira, que existe para proteger os bairros ricos por meio de ações preventivas, truculentas e sistemáticas nos bairros pobres.

A única diferença é que na maioria dos países ricos há uma coesão interna maior do que a nossa, e o muro áspero é erguido por toda a sociedade para isolar pessoas oriundas dos bolsões pobres do planeta. No Brasil, não temos essa unidade interna. Temos a nossa Holanda e o nosso Burundi dentro de casa. A cisão é interna: somos Canadá e somos Haiti. Os refugiados e os imigrantes que lutam pela vida estão naquele buraco ou naquela encosta que fica logo ali ao lado do nosso bairro bacana.

O sentimento de fechar as fronteiras para proteger o que temos das hordas que nada têm, que faz a Europa rejeitar náufragos ou os Estados Unidos sonhar com uma fronteira toda murada e gradeada, é o mesmo sentimento de quem, no Brasil, imagina que possa resolver a sua sensação cada vez mais atroz de insegurança farpando as cercas e armando os seguranças. (E, para tornar tudo ainda mais complexo, os soldados também moram na favela, ao lado dos bandidos.)

A desigualdade de condições e o descaso com o semelhante é tão chocante quando acontecem internamente – como sabem os miseráveis no Brasil, ou os latinos nos Estados Unidos, ou os povos indígenas no Canadá – quanto quando são direcionados para o outro lado da fronteira.

Faz sentido que você cuide bem do seu pedaço. E espere que os demais também cuidem dos seus. Faz sentido que você queira preservar as benesses que construiu no lugar em que mora da sobrecarga que os sistemas sofreriam com a chegada indiscriminada de gente que não conseguiu construir as mesas condições de vida nos lugares de onde vêm.

Mas não esqueça: todo mundo é imigrante nesse planeta. Todo mundo tem genes que vieram de um lugar diferente daquele em que nasceu. E essas cargas genéticas continuarão sua jornada mundo afora, quer você goste disso ou não.

E considere também: todo país desenvolvido já se beneficiou muito da imigração. Seja recebendo mão de obra barata quando precisou. Seja exportando famélicos quando as suas próprias condições não eram boas.

Portanto: qual é o pedaço de cada um na Terra? Compartilhamos territórios nacionais ou podemos pensar no compartilhamento do planeta que habitamos? O que pertence, por direito, a cada ser humano nascido sobre a crosta terrestre?

As fronteiras dos países ainda farão sentido daqui a 50 anos, num mundo cada vez menor e mais conectado, em termos culturais e econômicos? Por que, ao invés de fecharmos as portas, não compartilhamos as melhores práticas? E se todos tratássemos o planeta, e os seus recursos, como bem-comum, e os demais seres humanos como patrícios e conterrâneos?

Por fim: a má distribuição é o verdadeiro problema. Não só dentro de um determinado país. Mas também entre países. Olhar só para o seu umbigo não resolve mais. É solução insuficiente para garantir a sua própria prosperidade, a sua própria tranquilidade. Não importa se o seu umbigo é o seu condomínio gradeado ou aquilo que você chama de Pátria.

No fundo, vivemos todos no mesmo "país". Ele se chama Terra. A única fronteira relevante são as condições de sobrevivência para a espécie humana. Ninguém pode estar fora da zona da dignidade. Ou estabelecemos trocas mais justas e sustentáveis, seja entre os bairros da nossa cidade e ou entre os países dos vários continentes, ou estaremos fadados, mais cedo ou mais tarde, a enfrentar o apocalipse zumbi.

Se a horta do vizinho não vicejar, não adianta comprar fuzil e metralhadora, nem colocar minas terrestres no acesso à sua terra – os famintos baterão à sua porta. E a derrubarão.

A melhor estratégia, se não a única, para proteger aquilo que você tem é distribuir condições para que os outros possam ter também.

Enquanto de um lado houver indivíduos e nações dispostos a matar ou a deixar morrer para preservar as suas posses, e, de outro, gente sem nada a perder, disposta a matar ou a morrer para garantir a própria sobrevivência, viveremos em guerra, vendo crescer o ressentimento e a violência entre nós.

 

Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Founder da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Draft Canada. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.

Sobre o Autor

Jornalista e empreendedor, CEO & Founder da The Factory e Publisher do Projeto Draft. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico.